Tarifa subsidiária e a classificação do consumidor de energia elétrica rural

(Por Odilio Lobo, Engenheiro Eletricista, CREA/PR 8177/D; Advogado, OAB/PR 28746)

  1. INTRODUÇÃO

A análise que se faz abaixo está circunscrita no âmbito da seguinte questão:

– Considerando-se o ordenamento jurídico brasileiro, qual a definição para consumidor de energia elétrica da classe rural?

A resposta a essa pergunta é algo buscado permanentemente dentro das empresas que, no país, distribuem e comercializam energia elétrica, bem como no órgão regulador, em inúmeras instituições de defesa de interesses de consumidores para, não raro, acabar tendo que ser respondida pelo Poder Judiciário.

A questão ganha relevância posto que se sabe que a tarifa para o consumidor rural é bastante subsidiada, de modo que saber com clareza como se classifica corretamente o consumidor que tem sua unidade consumidora localizada na área rural, e dedica-se á atividades próprias da agropecuária,  é matéria de duplo interesse: dele, consumidor, que quer ter direito à tarifa mais baixa, e da empresa distribuidora de energia porque lhe interessa faturar mais. 

  1. PREMISSA BÁSICA

Entende-se que a ANEEL, enquanto órgão regulador, tem discricionariedade limitada para elaborar a definição, via resolução, porquanto a definição já existe em decreto, instituto normativo de hierarquia superior, ou, se o fizer, não poderá desconsiderá-los e ou contrariá-los.    

  1. AS VINCULAÇÕES LEGAIS EXISTENTES

III.I-   O Decreto 62655, de 03 de maio de 1968, é o primeiro desses institutos a estabelecer definição pormenorizada do que seja eletrificação rural, veja-se:

Art 1º “É considerada eletrificação rural a execução de serviços de transmissão e distribuição de energia elétrica destinada a consumidores localizados em áreas fora dos perímetros urbanos e suburbanos das sedes municipais e aglomerados populacionais com mais de 2.500 habitantes, e que se dediquem a atividades ligadas diretamente à exploração agropecuária, ou a consumidores localizados naquelas áreas, dedicando-se a quaisquer tipos de atividades porém com carga ligada de até 45kVA.”

Percebe-se, aqui, que a definição toma em consideração os elementos i) geográfico; e, ii) teleológico (finalidade sócio-econômica) para aperfeiçoar o conceito.

III.II- O Decreto 62.724, de 17 de maio de 1968, poucos dias após, ao estabelecer normas gerais de tarifação para as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos de energia elétrica, redefine o conceito, vide:

“Art 16. Entende-se por eletrificação rural a prestação de serviços de energia elétrica aos consumidores rurais individualizados ou integrantes de Cooperativa de Eletrificação Rural, assim caracterizados:

a) localizarem-se em área rural, ou seja, fora do perímetro urbano e suburbano das sedes municipais e dos aglomerados populacionais de mais de 2.500 habitantes, e

b) dedicarem-se às atividades ligadas diretamente à exploração agropecuária, ou seja, o cultivo do solo com culturas permanentes ou temporárias; criação, recriação, ou engorda de gados, criação de pequenos animais, silvicultura ou reflorestamento e a extração de produtos vegetais, ou,

c) dedicarem-se a quaisquer outras atividades na área rural, desde que a potência posta à sua disposição não ultrapasse de 45 kVA.”

As normas aqui mostradas elegem 3 (três) elementos, ou vocábulos, para definir o que seja consumidor rural. São eles:

  1. localização geográfica da unidade consumidora, nos termos especificados (alínea ‘a’);
  2. a atividade sócio-econômica a que se dedica o consumidor (alínea ‘b’), e;
  3. Potência instalada (alínea ‘c’). 

Citam-se inicialmente as normas contidas nesse art. 16 para deixar claro que, de há muito, o conceito vem suscitando dúvidas na classificação, ora em relação a um desses elementos, ora a outro.

Por esta redação original, nota-se que o decreto estabelece que o consumidor  rural deve ter sua unidade consumidora situada em área rural, assim também deve dedicar-se à atividade agropecuária, e, vai além: ele próprio faz a definição do que seja agropecuária.

Aqui a agropecuária é um conceito bastante abrangente.

De fato, no que respeita a parte agrícola ao estabelecer que é produto agrícola tudo o que advém de cultura do solo em regime ‘temporário’ ou ‘permanente’, e também a exploração advinda de ‘reflorestamento’ e ‘extrativismo’, não deixa praticamente nada do reino vegetal fora do conceito.

A exceção fica por conta de culturas que prescindem do uso do solo, as hidropônicas, por exemplo.

Não obstante sempre se falou em sede doutrinária e jurisprudencial que o objetivo básico da existência de tarifas rurais baixas (subsidiadas por outras classes consumidoras, e ou por outras fontes) seria o de incentivar a produção de alimentos vegetais e ou proteína animal, com vistas a alimentar especificamente a seres humanos, verifica-se que, no âmbito jurídico-normativo, nada se falou sobre isso.

Assim, a interpretação restritiva dando conta de que, por exemplo, a cultura do fumo não seria atividade rural para fins de classificação de consumidor de energia elétrica, não tinha, desde o início, raízes no mundo jurídico.

Assim também não teria o que se dizia a respeito da atividade do cultivo de florestas para a produção de celulose, ou lenha, (reflorestamentos em geral).

Já a definição de ‘pecuária’ é bastante dúbia porque utiliza-se de vocábulos imprecisos tais como ‘gados’, e ‘pequenos animais’.

Para uns ‘gados’ veio a significar “animal de quatro patas’. O leitor não deve se espantar, mas houve sim distribuidora de energia no país que entendeu que os aviários não seriam unidades consumidoras rurais posto que aves não teriam quatro patas…

Para outros ‘pequenos animais’ não incluía peixes, algo como entender que peixes não seriam animais.

Enfim, interpretações surgiram ao longo do tempo, de todas as cores e para todos os gostos.

É de se entender, no entanto, que a definição pretendeu ser o mais ampla possível, e, ao se falar em ‘gados’, referia-se a animais maiores (bovinos, suínos, caprinos etc); e,  ‘pequenos animais’, quis o legislador referir-se a tudo, coelhos, cães, avicultura em geral…etc.

De se notar também que a definição nada fala sobre a atividade estar voltada ou não à questão econômica, isto é, não excluía, por exemplo, a produção de animais em pequena escala nas chamadas ‘chácaras de fim de semana’, onde não havia produção rural com objetivos econômicos.

Essa variável veio a ser introduzida pelo Órgão Regulador, quando ele deu sua definição nas várias resoluções sobre condições gerais de fornecimento.

 O legislador, nessa parte, efetivamente pretendeu excluir da classificação rural as chácaras de fim de semana, isto é, o incentivo tarifário deveria ser estendido para aqueles que se dedicassem à produção agropecuária com fins econômicos, significando produção em escala suficiente para gerar comercialização, ou, no mínimo, a produção de subsistência.

III.III- Em 1975, através do Decreto 75.887, de 20 de junho, a definição ganha nova redação:

Art. 16. Entende-se por fornecimento rural a prestação de serviços de energia elétrica aos consumidores, pessoas físicas ou jurídicas, que se encontram em áreas rurais voltados, com objetivos econômicos, à exploração agropecuária, ou seja, o cultivo do solo com culturas permanentes ou temporárias; criação, recriação ou engorda de animais; silvicultura ou reflorescimento; e a extração de produtos vegetais.

§ 1º Incluem-se, excepcionalmente, na mesma classe, os fornecimentos aos consumidores que exercerem, com os mesmos objetivos, tais atividades dentro dos perímetros urbanos, sujeitas as hipóteses, à comprovação pelos consumidores, através de documento hábil.

§ 2º Considera-se, ainda, como rural, o fornecimento a consumidores que, localizados fora nos perímetros urbanos das sedes municipais, se dedicarem a atividades agro-industriais, ou seja, industriais de transformação ou

beneficiamento de produtos advindos diretamente da agropecuária, desde que a potência posta à sua disposição não ultrapasse 75KVA.” (grifou-se).

Observe-se que, desta feita, foram introduzidas importantes modificações, tais como, o fato de se classificar como rural o produtor que tivesse sua unidade consumidora localizada em área urbana; criou-se a figura da indústria rural etc.

Ressalta-se, sobretudo, que se continuou a dar conceituação ao que seria ‘agropecuária’, agora se referindo, no âmbito específico da pecuária, a criação recriação, ou engorda de animais.

Vê-se, então, que agora não há mais margem para dubiedades já que ‘animais’ pode ser grande ou pequeno, de quatro patas, de duas patas, ou de pata nenhuma, que viva na terra ou na água.

Note-se que foi introduzida no conceito a expressão ‘com objetivo econômico”, que antes não existia, como se viu.

E, finalmente, deixou de ser considerado consumidor rural aquele que se dedicasse a qualquer atividade sócio-econômica, desde que com potência menor que 45 KVA, revogando-se, tacitamente, a redação anterior.

III.IV- Sobreveio, então, o Decreto 3.653, de 7 de novembro de 2000, assim dispondo:

Art. 16. Será classificada como rural a unidade consumidora localizada em área rural, onde seja desenvolvida atividade relativa à agropecuária, inclusive o beneficiamento ou a conservação dos produtos agrícolas oriundos da mesma propriedade.

§ 1o Inclui-se nesta mesma classe a unidade consumidora residencial utilizada por trabalhador rural.

§ 2o Considera-se, ainda, como rural, a unidade consumidora localizada em área rural que se dedicar a atividades agroindustriais, ou seja, indústrias de transformação ou beneficiamento de produtos advindos diretamente da agropecuária, desde que a potência posta a sua disposição não ultrapasse 112,5 kVA.(grifou-se)

Percebe-se, então, que em 2000 o conceito passa a ser amesquinhado, volta-se a restringir a área geográfica apenas à área rural; e, não mais se define o que seja atividade agropecuária.

III.V- E, ao final, em 2004, o artigo 16 sofreu outra reforma.   

O Art. 16, com redação dada pelo Decreto 5.287, de 26 de novembro desse ano, manteve intacta a cabeça do artigo com a redação dada pelo decreto de 2000, e no seu parágrafo primeiro, inciso II, volta a entender que o consumidor localizado em área urbana desde que se dedique às atividades agropecuárias também é consumidor rural.

Ora, se o decreto de 2000 e o decreto de 2004 não mais conceituam a atividade agropecuária, então se pergunta: o que se deve entender atualmente por atividade agropecuária para fins de classificação de consumidor de energia?

A resposta é: a redação dada pelo decreto de 1975.

Isso porque se o decreto de 2000, bem como o de 2004, que o sucederam, se silenciaram sobre o tema, significa que a redação anterior é a que permanece em vigência.

Esse entendimento vem da interpretação da lei no tempo: se os decretos de 2000 e 2004 estabelecessem outro conceito, o conceito válido seria o deles, ou seja, o novo conceito revogaria o anterior.

Mas o que se observa neste caso em concreto é que estes dois últimos decretos não criam conceito novo, mas se silenciam sobre a matéria, logo, o conceito do decreto de 1975 foi recepcionado pelos outros dois.

A regra jurídica é essa: se não foi contrariado, foi recepcionado.

Em resumo, atividade agropecuária é: 

“o cultivo do solo com culturas permanentes ou temporárias; criação, recriação ou engorda de animais; silvicultura ou reflorescimento; e a extração de produtos vegetais.”

E, isso, “com objetivos econômicos”; e mais, os que se dediquem a essas atividades em área urbana também serão classificados como rurais.

Essa é a redação atual do Artigo 16 do Decreto do Dec. 62.724, de 17.05.68, com a redação dada pelo Decreto 5.287/2004.

  1. CONCLUSÕES.

Entende-se, pelas razões expostas, que a redação definindo o conceito de consumidor rural já está dada pelo artigo 16 do decreto 62724, e eventual resolução do Órgão Regulador não pode nem ampliar, nem reduzir o conceito, tal qual estampado nesse artigo.

De qualquer modo, importa saber que a ANEEL, em sua Resolução 414/2010, está estabelecendo  que a ‘atividade agropecuária’ tenha a definição dada pelo CNAE.

Então cabe nova pergunta: e qual é essa definição? 

    O sistema de classificação do CNAE estabelece:

– na sua seção 01: atividade de Agricultura, Pecuária e serviços relacionados;

– Na seção 02: Produção Florestal;

– Na seção 03: Pesca e Aqüicultura.

Então, como no conceito advindo do Art. 16 do Dec. 62.724, a redação da atividade fala tanto do vocábulo Agricultura e Pecuária, e nela se fala em ‘animais’, no sentido geral, e cultivo no solo de produtos permanentes e temporários, também no sentido geral e amplo, no máximo que a definição via resolução pode fazer é entrar em detalhes explicitando, citando exemplos do que seja uma coisa e do que seja outra.

Assim, veja-se a seção 01 da classificação do CNAE:

Código / Descrição Grau
de risco
Agricultura, Pecuária e Serviços relacionados com essas atividades  
011 – PRODUÇÃO DE LAVOURAS TEMPORÁRIAS  
01112 – CULTIVO DE CEREAIS
01120 – CULTIVO DE ALGODÃO HERBÁCEO
01139 – CULTIVO DE CANA-DE-AÇÚCAR
01147 – CULTIVO DE FUMO
01155 – CULTIVO DE SOJA
01198 – CULTIVO DE OUTROS PRODUTOS TEMPORÁRIOS
012 – HORTICULTURA E PRODUTOS DE VIVEIRO  
01210 – CULTIVO DE HORTALIÇAS, LEGUMES E ESPECIARIAS HORTÍCOLAS
01228 – CULTIVO DE FLORES E PLANTAS ORNAMENTAIS
013 – PRODUÇÃO DE LAVOURAS PERMANENTES  
01317 – CULTIVO DE FRUTAS CÍTRICAS
01325 – CULTIVO DE CAFÉ
01333 – CULTIVO DE CACAU
01341 – CULTIVO DE UVA
01392 – CULTIVO DE OUTRAS FRUTAS, FRUTOS SECOS, PLANTAS PARA PREPARO DE BEBIDAS E PARA PRODUÇÃO DE CONDIMENTOS
014 – PECUÁRIA  
01414 – CRIAÇÃO DE BOVINOS
01422 – CRIAÇÃO DE OUTROS ANIMAIS DE GRANDE PORTE
01430 – CRIAÇÃO DE OVINOS
01449 – CRIAÇÃO DE SUÍNOS
01457 – CRIAÇÃO DE AVES
01465 – CRIAÇÃO DE OUTROS ANIMAIS
015 – PRODUÇÃO MISTA: LAVOURA E PECUÁRIA  
01503 – PRODUÇÃO MISTA: LAVOURA E PECUÁRIA
016 – ATIVIDADES DE SERVIÇOS RELACIONADOS COM A AGRICULTURA E PECUÁRIA, EXCETO ATIVIDADES VETERINÁRIAS  
01619 – ATIVIDADES DE SERVIÇOS RELACIONADOS COM A AGRICULTURA
01627 – ATIVIDADES DE SERVIÇOS RELACIONADOS COM A PECUÁRIA, EXCETO ATIVIDADES VETERINÁRIAS
021 – SILVICULTURA, EXPLORAÇÃO FLORESTAL E SERVIÇOS RELACIONADOS COM ESTAS ATIVIDADES  
02119 – SILVICULTURA
02127 – EXPLORAÇÃO FLORESTAL
02135 – ATIVIDADES DOS SERVIÇOS RELACIONADOS COM A SILVICULTURA E A EXPLORAÇÃO FLORESTAL

Vê-se que a classificação torna o tema bastante confuso porque ao mesmo tempo em que fala na seção de pecuária à ‘criação de outros animais’, há a seção 03 que trata da pesca, ou seja, é como se peixe não fosse animal, a ponto de merecer classificação em outra seção.

A adoção do conceito de atividade agropecuária por importação das normas do CNAE, como estabelece a ANEEL, com todo respeito, em nada colabora para elucidar, mas para criar ainda mais áreas de indefinições, aptas a gerar mais atritos.

Entende-se, face a tudo que foi exposto acima, que a melhor solução é adotar simplesmente o que a legislação manda: a do decreto acima mencionado, que pode ser assim resumido:

“Cultivo de lavouras e criação de animais, com objetivo econômico, independentemente da localização geográfica da unidade consumidora”.

E justifica-se:

– cultivo de lavoura, redigido dessa forma, se refere obviamente a qualquer lavoura (permanente ou temporária; sejam grãos para alimentação humana, ou para alimentar outros animais; ou planta ornamental; seja planta fixada no solo, ou hidropônica)

E, no que se refere ao reino animal, também a redação é genérica (animal é animal, basta ser animal para fazer parte do conceito; pode ser animal grande, ou pequeno; pode ser ornamental; ou de corte para alimentação humana; pode voar, como as abelhas; ou pode nadar, como os peixes…).

Com esse conceito seriam beneficiados com a tarifa rural toda a produção agropecuária, desde que a produção tenha significação econômica, vedando-se o benefício para as chácaras de lazer, onde, em geral, se criam animais e se plantam árvores, flores, etc, mas sem que isso constitua atividade econômica do proprietário.