UMA CRÍTICA À REGULAMENTAÇÃO DE SOCIEDADE COOPERATIVA DE SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO.

Odilio Ortigoza Lobo[1]

RESUMO

Não obstante a doutrina não encontre maiores dificuldades em definir o que seja serviço público, não é tão fácil delimitar a partir de que ponto um serviço, cuja materialidade esteja presente nesse conceito, deixa de ser privado e passa a requerer regulamentação pública. Exemplos afloram em vários setores da vida contemporânea, vg, o transporte de passageiros (vide caso do aplicativo uber), o serviço de multimídia privado, e o caso que se cuida aqui que é a distribuição de energia elétrica. O crescimento dos sistemas de distribuição impôs a necessidade de se regulamentar a sua prestação em regime de direito público, obrigando a que a sociedade cooperativa, sua prestadora, que antes operava tais serviços em regime de direito inteiramente privado, passasse a obedecer a regulamentação posta pela União. Dado que este tipo de sociedade tem regime jurídico próprio no Direito Brasileiro o que se aborda aqui são os pontos jurídicos mais significativos em que esse regime conflita com a regulamentação que veio a ser editada.

Palavras-chaves: Sociedade Cooperativa. Serviço Público. Regulamentação.

ABSTRACT

Regardless the doctrine doesn’t finding major issues in defining what is public service, it is not that easy to delimit from what point on a service, which materiality is present in this concept, cease to be private and starts demanding public regulation. Examples flourish in many sectors of modern life, v.g, passenger transportation (Uber app), multimedia private service, and the case in which is cared here: electric energy distribution. The growth of distribution systems require the necessity of regulation in the provision by the public sphere, obligating that the cooperative society, which used to operate this services in an entirely private regime, pass to obey the regulation imposed by the Union. Given that this type of society have an own legal regime in Brazilian Law what is here approached are the most significant legal points in which this regime conflicts with the regulation that came to be edited.

Keywords: Cooperative Society. Public Service. Regulation

Sumário: Introdução; i- Dos fatos e atos históricos que importam conhecer. Síntese; i.i- Distribuição de energia elétrica em regime de direito privado; i.ii- Da impossibilidade jurídica de regulamentar; i.iii- A regulamentação facultada; i.iv- Os preceitos fundamentais da regulamentação; ii- O regime jurídico da sociedade cooperativa. Sintese; ii.i- O ato cooperativo vis a vis a relação de consumo; ii.ii- O ato cooperativo e tarifas; ii.iii- O ato cooperativo vis a vis os conceitos jurídicos de faturamento. Síntese; ii.iv- O ato cooperativo e a compra e venda de energia. Fatura; iii- Regime jurídico da sociedade mercantil ante o tratamento patrimonial estabelecido na regulamentação da aneel; iv- Regime jurídico da sociedade cooperativa face seu atual tratamento patrimonial; v- Alienação de ativos entre empresas mercantis distribuidoras de energia elétrica em regime de direito público; vi- A regulamentação do patrimônio da sociedade cooperativa estabelecida pela aneel para o início de sua operação em regime de direito público; vii- O primeiro ano de operação em regime de direito público; viii-  A reversão. Regime jurídico inaplicável; ix-  Permissão. Título precário. x- Fruição dos serviços. Fidelidade; xi- Prazo da permissão; xii- Remuneração de capital; xiii- Regulamentação econômico-financeira. Matéria constitucional e infraconstitucional; xiv- Conclusões; xv- Referências

INTRODUÇÃO. ORNITORRINCO

É um animal muito estranho. Tem bico semelhante ao do pato, mas é mamífero. É mamífero, mas põe ovos. Dá de mamar aos filhotes, mas não tem tetas. Enfim, é um bicho que se origina de uma salada genética, porque seu genoma inclui genes derivados de répteis, mamíferos e aves. No mundo natural, as coisas se dão desse modo e não nos é dado dissentir das suas leis: elas construíram o ornitorrinco dessa forma e ponto, gostemos dela ou não. Tal não se pode conceber quando nós, humanos, nos propomos a regular algo, posto que não podemos, ou não deveríamos, criar normas que pretendam transformar um cão em um peixe, ou numa mistura entre ambos. Todavia, nossa criatividade parece não encontrar limites claros em determinados campos regulatórios, onde alguns institutos consagrados do direito são facilmente transmutados em outros, e isso sendo feito sem cerimônia maior. É o caso que se tratará neste arrazoado: ao se regulamentar a sociedade cooperativa como prestadora de serviço público a Administração Pública Federal mistura genes jurídicos de outros regimes, e acaba por produzir regras que senão desconstituem integralmente o que seja uma sociedade cooperativa, por certo a mutila substancialmente.

Ainda que em breves resumos, serão monstrados i) o contexto histórico que gerou a necessidade de criação das cooperativas de distribuição de energia no Brasil; ii) as suas expansões para além das previsões iniciais; iii) o atendimento com serviços de energia à áreas urbanas, que mudam a orientação proposta inicialmente de atuação tão somente em área rural; iv) a necessidade da edição de regulamentação pública e a impossibilidade de realizá-la; v) a oportunidade jurídica da criação de normas regulamentares; e; vi) se apontam alguns pontos dessa regulamentação nos quais se observam choques com normas e princípios que o cooperativismo tem como inegociáveis, frutos que são de construção doutrinária histórica tanto em nosso direito, como alhures.

O objeto deste artigo não consiste no estudo/exame dos institutos do nosso direito civil, administrativo ou constitucional no sentido de conhece-los. Não. O que se faz aqui é tão somente mencioná-los para possibilitar a constatação de que existem incompatibilidades entre aqueles que vicejam na seara cooperativista com o tratamento regulatório a que as cooperativas acabaram sendo submetidas. Enfim, apontar essas inconformidades e sugerir aqui e acolá uma possibilidade de solução é o que se verá a seguir.

I – DOS FATOS E ATOS HISTÓRICOS QUE IMPORTAM CONHECER. SÍNTESE.

I.I- DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA EM REGIME DE DIREITO PRIVADO

As cooperativas de energia no Brasil para prestarem seus serviços adquirem energia de uma concessionária de distribuição, ou de uma concessionária de geração para, em seguida, levá-la até a propriedade/ponto de consumo de seus associados.

Para isso obtiveram autorização estatal para funcionar com base em normas editadas pelo Decreto Federal nº 62.655/68.

Em síntese, esse decreto conferia competência jurídica à União para outorgar, a um interessado qualquer, autorização (vocábulo aqui usado em seu sentido técnico-jurídico) para ser um auto distribuidor de energia elétrica, construindo, operando e mantendo rede de distribuição de energia para uso próprio, uso que se convencionou denominar ‘privativo’. Vide o Art. 2º desse decreto, que dispõe que “depende de permissão federal, por ato do Ministro das Minas e Energia, a execução de obras de transmissão e distribuição de energia elétrica destinada ao uso privativo de consumidores rurais, individualmente ou associados.”.

Portanto, um ruralista qualquer, ou um grupo deles, associados a uma cooperativa, por exemplo, poderiam resolver seus problemas de falta energia fazendo, eles próprios, o que as concessionárias de distribuição não faziam. (Concessionárias de distribuição de energia que, à época, eram controladas pelos estados da federação).

E não faziam porque a prestação do serviço de distribuição de energia em área rural, sabidamente, é menos atrativa economicamente que o prestado na área urbano/industrial para um mesmo volume de investimento.

Importa, neste ponto, deixar claro que a distribuição de energia elétrica aos associados foi autorizada para ser prestada inteiramente sob regime de direito privado, ou, em outros termos, prescindindo de regulamentação federal, seja com relação aos preços praticados, seja com relação à qualidade e confiabilidade dos serviços, assim também qualquer outra norma pública.

De modo que aquele decreto visou desonerar as concessionárias públicas de investimentos vultosos permitindo, inclusive, que as cooperativas se expandissem, isto é, fossem construindo mais e mais redes desde que nas áreas rurais e para atender consumidores finais rurais e ou suburbanos.

É dizer, consumidores de energia que, claramente, são os menos atrativos para serem atendidos por empresas que distribuem energia elétrica em regime da prestação do serviço pelo lucro da atividade.

Mas, além disso, o decreto 62655/68 criou a possibilidade para a  cooperativa construir expansões para atendimentos de mais usuários de energia, isto é, atender a outros que não os constantes no ato autorizativo original. Vide: 

Art. 6º. As modificações e ampliações dos sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica que forem objeto de permissão do Ministro das Minas e Energia serão comunicadas ao Departamento Nacional de Águas e Energia do Ministério das Minas e Energia, para efeitos estatísticos

Ora, a expansão ilimitada para atendimento de todos os interessados, seja em área rural, seja urbana, do ponto de vista jurídico, configura atendimento ao público em geral, o que só poderia ser feito por prestador de serviço público.

Em outros termos: permitir a expansão para atendimento de qualquer do povo, configura contradição em termos com a figura da autorização para ‘uso privativo’, já que se torna impossível determinar de quem seria tal ‘uso privativo’.

O que se quer dizer é que as atividades das cooperativas brasileiras, bem por isso, já se configuravam carentes de regulamentação pública desde sempre, mas o poder público calou-se, permitindo-lhes expandirem-se porque defendia o interesse econômico-financeiro das concessionárias distribuidoras, posto que ficavam livres dos altíssimos custos da manutenção dessas redes, assim também, com se disse acima, dos vultosos investimentos iniciais para construí-las.

O Estado Brasileiro, portanto, foi sempre conivente com a criação, consolidação e desenvolvimento das cooperativas de eletrificação rural no país.

Em decorrência, o que resultou foi que as cooperativas, sem nenhuma regulamentação pública, prestavam de fato um serviço classificado legalmente como público (CF/88, Art. 21, XII), denotando-se disso, clara irregularidade.

E a situação agrava-se na medida em que as décadas foram-se transcorrendo, e as redes de distribuição que outrora passaram em pequenas vilas rurais viram-nas transformarem-se em distritos e sedes municipais; é dizer: estava-se, a toda vista, ante a prestação de um serviço público que carecia de regulamentação.

Como resultado final desse processo histórico constatou-se que cerca de 60 sedes municipais no país estavam sendo atendidas com serviços de distribuição de energia elétrica por cooperativas.

I.II- DA IMPOSSIBILIDADE JURIDICA DE REGULAMENTAR

Note-se que as concessionárias de distribuição ‘hospedeiras’ (em cujas áreas de concessão incrustaram-se as redes de distribuição das cooperativas) tinham em seus contratos de concessões cláusulas de exclusividade.

Isso significava, dentre outras coisas, que só elas, em seus territórios geográficos concedidos, poderiam prestar serviços públicos de distribuição de energia elétrica.

E esses contratos eram legais, eis que resguardados pela proteção constitucional ao direito adquirido e ato jurídico perfeito; logo, enquanto vigentes, não haveria possibilidade jurídica de regulamentar, nos mesmos territórios, novos agentes públicos de distribuição, inclusive cooperativas, mesmo que o Estado Regulador desejasse fazê-lo.

ii.ii

I.III- A REGULAMENTAÇÃO FACULTADA

Em 1995, com o advento do governo FHC, de matiz reconhecidamente liberal, no entanto, edita-se lei federal (Lei Federal nº 9.074/95) que prorrogava os termos contratuais finais das concessões de distribuição de energia elétrica, conforme se depreende de seu artigo 25: “As prorrogações de prazo, de que trata esta Lei, somente terão eficácia com assinatura de contratos de concessão que contenham cláusula de renúncia a eventuais direitos preexistentes.”.

Portanto, a concessão nova, advinda dos contratos de concessão prorrogados, aboliu todos os direitos adquiridos anteriormente pelas concessionárias de distribuição de energia elétrica, inclusive, e principalmente, o direito de exclusividade.

Em termos simples: as concessionárias de distribuição, para ganhar mais 40 anos de concessão, renunciaram aos direitos até então estabelecidos.

Desse modo, nasceu aí a possibilidade de se criar instituições novas para atuar no setor elétrico brasileiro, como é o caso do consumidor livre (pode escolher de quem deseja comprar energia) e do produtor independente de energia (pode gerar e vender livremente energia elétrica no mercado consumidor).

E nasceu também, só então, a possibilidade jurídica de, naqueles territórios antes exclusivos, se demarcar uma área geográfica e nela regulamentar a atuação das cooperativas, agora na qualidade de prestadora de serviços públicos de distribuição de energia elétrica.

I.IV- OS PRECEITOS FUNDAMENTAIS DA REGULAMENTAÇÃO

A regulamentação das atividades das cooperativas passou a ser possível mediante a faculdade legal concedida à União através de ditame do Art. 23 da Lei Federal nº 9.074/95:

Na prorrogação das atuais concessões para distribuição de energia elétrica, o poder concedente diligenciará no sentido de compatibilizar as áreas concedidas às empresas distribuidoras com as áreas de atuação de cooperativas de eletrificação rural, examinando suas situações de fato como prestadoras de serviço público, visando enquadrar as cooperativas como permissionárias de serviço público de energia elétrica.

        § 1o Constatado, em processo administrativo, que a cooperativa exerce, em situação de fato ou com base em permissão anteriormente outorgada, atividade de comercialização de energia elétrica a público indistinto localizado em sua área de atuação é facultado ao poder concedente promover a regularização da permissão, preservado o atual regime jurídico próprio das cooperativas.

        § 2o O processo de regularização das cooperativas de eletrificação rural será definido em regulamentação própria, preservando suas peculiaridades associativistas.

A partir da edição dessas normas o poder concedente (União; e, por delegação legal, ANEEL) passou a regulamentar as cooperativas, na qualidade de permissionárias para a prestação de serviços públicos de distribuição de energia elétrica.

Essa regulamentação estabelece normas relativas à qualidade do serviço a ser prestado; assim também com relação às tarifas a serem cobradas dos associados das cooperativas; o tratamento da avaliação patrimonial; remuneração aos ativos que a cooperativa possui; fiscalização dos serviços; aplicação de penalidades; regime contábil, etc.

Em síntese, o que se verificou foi o seguinte: 52 cooperativas brasileiras foram classificadas pela ANEEL como sendo aptas a prestarem seus serviços regulamentadas como permissionárias para a prestação de serviços públicos de distribuição de energia elétrica.

A partir de 2008/2009 observou-se que 38 dessas cooperativas assinaram os contratos de permissão com a ANEEL.

As restantes 14 cooperativas estão em vias de assinar dito contrato ao tempo em que este artigo está sendo redigido.

A nota fundamental a ser tida em conta é que essas normas obrigam o poder concedente a, ao regular, obedecer necessariamente o regime jurídico da sociedade cooperativa.

II- O REGIME JURÍDICO DA SOCIEDADE COOPERATIVA. SINTESE.

As questões técnicas a serem examinadas aqui situam-se em campo jurídico muito pouco examinado pela nossa doutrina e jurisprudência.

Há que se ter em conta, incialmente, que existem normas constitucionais incidentes naquelas questões que aparentam orientações em sentidos opostos. Constate-se.

De um lado o Art. 21 da constituição Federal define os serviços de eletricidade como sendo um serviço público de titularidade da União, vide:

Art. 21. Compete à União:

(…)

 XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: 

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos.

Então, a primeira constatação é a de que, no Brasil, o serviço de distribuição de energia elétrica, se prestado ao público em geral, é um serviço público por determinação constitucional.

Ora, sabe-se que o serviço público, necessariamente, deve ser regulamentado pelo poder público, segundo normas de direito público, qualquer que seja a sua natureza.

Ocorre que essa mesma constituição também trás norma imperativa no sentido de vetar a ingerência estatal no funcionamento das sociedades cooperativas, a teor do inciso XVIII do seu Art. 5º: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento.”

Portanto, se, por um lado, observa-se a obrigatoriedade da regulamentação desse serviço, por outro se ordena que no caso das sociedades cooperativas é vedado fazê-lo.

E, se a vedação à interferência não deve ser tomada em termos absolutos, há que se ter como certo, de outro lado, que a eventual interferência também não possa ser tal que desnature o regime jurídico das sociedades cooperativas.

Houve, como visto, preocupação concreta do legislador com esse regime ao trazer, devidamente positivado, preceito a não permitir qualquer outro entendimento: a cooperativa deve ser regulamentada como prestadora de serviços públicos obedecendo-se o seu regime jurídico próprio.

Essas normas, ao estabelecerem a necessidade de obediência ao regime jurídico próprio das cooperativas e a preservação de suas características de sociedade de pessoas, nada trazem de novo, consubstanciando-se em repetições, a rigor, desnecessárias.

É que, se é para regulamentar a prestação do serviço por sociedade cooperativa, evidencia-se que o regime societário a ser observado só poderia ser o dessas sociedades e nenhum outro, ou a sociedade a ser regulamentada não seria cooperativa.

Mas, de qualquer modo, pode-se aventar que o legislador estava apenas acentuando fortementea necessidade dessa observância, ou talvez porque a Administração, ou órgão regulamentador, não tinha experiência histórica com tal regime jurídico, como de fato mostrou não ter.

A lei não deu à União margem para escolha: as normas contidas nos dois parágrafos do Art. 23 da lei 9074/95 acima transcritos são imperativas.

Elas determinam que a regulamentação das cooperativas, enquanto prestadoras de serviços públicos, deve, necessariamente, ser feita a partir da construção de regramentos que estejam acordes com o regime jurídico das sociedades cooperativas.

No campo deste arrazoado, esse é o propósito, se quer demonstrar por quais razões a regulamentação que a União veio a criar não é compatível com o regime jurídico das sociedades cooperativas.

Optou-se por explicitar o regime jurídico das sociedades cooperativas de forma prática, isto é, elegeram-se alguns dos seus institutos para que a análise não se prendesse apenas a comentários doutrinários, e ou jurisprudenciais, in abstracto.

II.I- O ATO COOPERATIVO VIS A VIS A RELAÇÃO DE CONSUMO.

O regime jurídico que conforma as operações das sociedades cooperativas no Brasil, ditado pela Lei Federal nº 5.764/71, estabelece no seu Art. 3º que “celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”.

Essa expressão, sem objetivo de lucro, significa que a cooperativa opera fazendo a distribuição dos custos operacionais entre seus associados.

Em termos simples: tudo o que custa monetariamente para manter a sociedade é rateado entre os sócios.

Assim, durante um exercício social, mês a mês, ou em outro período, os associados fazem adiantamento de recursos financeiros para o custeio das operações.

Se, ao final do exercício, forem apuradas sobras, significa que houve contribuições acima da necessidade.

Neste caso promove-se o retorno das sobras líquidas, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado (…). (Lei Federal nº 5.764/71, Art.4º,VII).

No caso inverso, em que o balanço anual apurar perdas, significa que as contribuições foram insuficientes para a cobertura de todos os custos operacionais, e o resultado mostrou prejuízo; e, então, os sócios são obrigados (Art.89 da Lei Federal nº 5.764/71) a, mediante rateio, contribuir, extraordinariamente, para cobri-lo.

A sociedade, por isso, não tem objetivo de lucro, mas, sim, operar buscando de cada sócio contribuição para, estritamente, promover o seu custeio.

Os custos operacionais a que se faz menção acima são aqueles necessários e imprescindíveis para que a sociedade cumpra os objetivos sociais.

No caso específico das cooperativas de energia, o objeto social principal é o de construir, operar e manter sistemas de distribuição de energia elétrica prestando, com isso, os chamados serviços de eletricidade aos associados.

Portanto, os custos operacionais de uma sociedade cooperativa desse tipo são, dentre outros menos expressivos, os incorridos para adquirir energia elétrica (via de regra de uma concessionária local); custear folha de pagamentos (pessoal administrativo e técnicos de campo); pagar tributos; pagar materiais usados em manutenção das redes, etc.

Cada cooperativa, por deliberação de seus órgãos administrativos, estabelece a forma como esses custos devem ser rateados entre os associados.

O que importa saber aqui é que esse rateio implica em uma transação financeira entre o sócio e sua cooperativa, esta emitindo-lhe um instrumento de cobrança; e, aquele, efetuando o pagamento.

Perceba-se que os mesmos serviços de eletricidade quando prestados por uma empresa mercantil, uma concessionária para a prestação de serviços públicos de distribuição de energia, são também faturados contra o seu consumidor usuário.

Aparentemente são operações financeiras iguais, dado o fato de que são a contraprestação por um serviço prestado por um, e utilizado por outro. Ou, dizendo de outra forma, seriam operações iguais posto que de iguais naturezas e origens.

No entanto, há entre essas operações financeiras enormes diferenças jurídicas. Repita-se: se elas são iguais porque oriundas de fatos iguais que se dão no mundo físico, não o são no mundo jurídico.

E elas se diferenciam juridicamente porque a lei assim determina.

De fato, o regime jurídico das sociedades cooperativas estabelece que as operações financeiras de rateio do custo de operação da sociedade é um ato cooperativo, assim definido pelo Art. 79 da Lei Federal nº 5.764/71:

Art. 79 – Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si, quando associadas, para consecução dos objetivos sociais.

Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

Portanto, quando a cooperativa de prestação de serviços de eletricidade emite contra o associado um instrumento de cobrança refletindo o valor do rateio dos custos não se está ante um ato jurídico de compra e venda de energia elétrica.

A energia elétrica que a cooperativa entrega ao seu associado foi comprada em nome da própria cooperativa, de modo que, ao entregá-la ao associado, não se pode negar que se está ante fato caracterizador da alienação de um bem.

É inegável que ocorre nesse ato uma transferência de domínio, mas o que deve ser entendido é que essa transferência não tem a natureza jurídica da alienação comercial. Neste último caso o comerciante faz incidir, na alienação, sua margem de lucro, que só a ele pertence.

No caso da cooperativa pouco importa essa margem. Se houver sobras isso significa apenas que a administração da cooperativa, durante o exercício social, calculou em demasia as contribuições dos associados, e o valor das sobras deve ser-lhes devolvidas.

Essa é uma, dentre muitas outras, diferença fundamental que deveria ter sido entendida quando a Aneel estivesse elaborando a regulamentação das cooperativas de energia: no ato cooperativo não há comercialização de energia elétrica.

Ainda, há que se ter presente que o regime jurídico das sociedades cooperativas traz embutido algumas relações jurídicas entre o associado e a cooperativa que produzem significativas diferenças entre as que ocorrem entre um consumidor de energiae a concessionária que o supre com serviços de eletricidade.

Juridicamente considerado, o associado da cooperativa de energia não é um seu consumidor, em outros termos. 

De fato, na sociedade cooperativa o associado é, simultaneamente, i) o dono da sociedade, ii) seu gerente, e iii) o tomador de seus serviços.

De cada particularidade dessas decorrem relações jurídicas que faz com que o ato cooperativo apresente-se como uma operação financeira sui generis, totalmente diferente do ato mercantil de compra e venda; e mais, são características puramente jurídicas que alçam sua análise a um campo específico do direito, o Direito Cooperativo que, por sua vez, goza de sensível autonomia no Direito Brasileiro. 

Nesse âmbito a Ilustre Ministra do STJ Fátima Nancy Andrighi, em ensaio a propósito da autonomia do Direito Cooperativo (ANDRIGUI, 2003, p.49-57), bem como de sua consequência em relação ao ato cooperativo, produz lições que, efetivamente, valem a pena conhecer. Veja-se.

(…) é imprescindível atestar que a autonomia do Direito Cooperativo tem como esteio justamente a natureza peculiar das sociedades cooperativas em relação às demais instituições, formando um sistema próprio e independente, por incompatível a sua sistemática jurídica com a orientação e o conteúdo das normas de outros ramos do Direito.

(…)

Tal ilação [autonomia do direito cooperativo] decorre diretamente da singularidade do denominado ato cooperativo (…) (destacou-se).

É esse Direito Cooperativo que consagra entendimento segundo o qual não existe relação de consumo entre associado e cooperativa quando entre eles se está ante a prática do ato cooperativo.

Isso se dá porque os pressupostos legais que delineiam a relação de consumo não se encontram presentes quando a relação financeira ou negócio jurídico sócio-cooperativa é o ato cooperativo entre ambos.

O primeiro desses pressupostos da relação de consumo está consubstanciado em um fato: na relação de consumo ocorre compra e venda, com objetivo de lucro, o que, obviamente, só ocorre na sociedade mercantil.

E, sabe-se, que a finalidade da constituição e existência da cooperativa se diferenciam integralmente da sociedade de capital posto que, nesta, a obrigação do consumidor que com ela se relaciona inicia e termina na própria relação de consumo; já naquela, a obrigação é permanente, diferida no tempo, na medida em que o sócio responde sempre pelas atividades sociais, quer quando se observam sobras, ou quando o exercício social apresentar perdas.

No caso da empresa mercantil prestadora de serviços públicos de eletricidade (é o caso de todas as concessionárias de distribuição de energia no país) o seu consumidor arca apenas com a obrigação de, uma vez recebido o fornecimento de energia elétrica, pagar a sua contraprestação tarifária, e fim.

Se o exercício social mostrar-se lucrativo o titular da concessão embolsará os lucros; ou, em caso inverso, arcará com os prejuízos.

Um outro elemento, ou pressuposto da relação de consumo, refere-se à hipossuficiência do consumidor face ao fornecedor do produto ou serviço.

O Direito Cooperativo também já se apaziguou nesse sentido, ao não reconhecer hipossuficiência do associado em relação a sua cooperativa, sobretudo porque trata de sociedade da qual ele é sócio, usuário do serviço prestado e administrador ao mesmo tempo.

É por entender essas claras diferenças jurídicas que o judiciário brasileiro afasta a aplicação do CDC quando uma operação sócio-cooperativa enquadra-se como ato cooperativo.

Sabendo-se que o principal ato cooperativo na cooperativa de energia é o rateio de custos que ela faz como contraprestação pelos serviços que presta, o tratamento do cooperado como consumidor de energia elétrica induz á outras práticas ilegais. Vejam-se.

II.II- O ATO COOPERATIVO E TARIFAS

A regulamentação que a ANEEL produziu estabelece que os associados da cooperativa deverão pagar tarifas como contraprestação dos serviços recebidos, e que tais tarifas seriam fixadas por essa agência. O contrato de permissão que as cooperativas já assinaram estabelece:

Cláusula Sétima – Sem prejuízo da observância às disposições contidas na legislação que disciplina a prestação do serviço público de energia elétrica, constituem encargos ou obrigações da PERMISSIONÁRIA inerentes à permissão regulada neste Contrato:

(…)

XIII – fornecer energia elétrica às unidades consumidoras localizadas em sua área de permissão, nos pontos de entrega definidos nas normas dos serviços, pelas tarifas homologadas pela ANEEL, nas condições estabelecidas nos respectivos contratos de fornecimento e na legislação;

Como se viu, repetição necessária, na sociedade cooperativa a arrecadação de recursos do associado se dá segundo exercício de prospecção, ou seja, a partir de uma projeção dos prováveis dispêndios é que a cooperativa cobra de cada sócio a contribuição financeira para poder prestar-lhe os serviços. Essa contribuição financeira é o seu ato cooperativo de maior significado e importância.

A conclusão evidencia-se: o regime econômico-financeiro em que opera a sociedade é o do rateio de custos; ou, trata-se do regime jurídico da prestação dos serviços pelo seu estrito custo.

De outro lado tem-se que regime jurídico que a ANEEL estabelece para que discipline as atividades de distribuição pública de eletricidade obriga a concessionária, sociedade mercantil por excelência, à prática de tarifas como contraprestação do serviço, obrigação que, agora, também está impondo às cooperativas que estão sendo regulamentadas, conforme a determinação da cláusula contratual acima transcrita.

Em suma, a concessionária pratica tarifas, que é um preço público; e, como tal, decidido alhures pelo poder concedente (rectius, órgão regulador).

Ora, o preço público não guarda juridicamente nenhuma semelhança com o regime de rateios de custos estabelecido na legislação cooperativista.

De outro ângulo, tal como a Lei Cooperativista define o regime da prestação do serviço pelo custo, a Lei 9427/1996 (lei que cria a ANEEL e dita o regime jurídico das concessões dos serviços públicos de eletricidade)  estabelece o regime econômico-financeiro da sociedade mercantil concessionária. Confiram-se:

Art. 14. O regime econômico e financeiro da concessão de serviço público de energia elétrica, conforme estabelecido no respectivo contrato, compreende:

I – a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço, nos termos da Lei n8.987, de 13 de fevereiro de 1995;

Art. 15. Entende-se por serviço pelo preço o regime econômico-financeiro mediante o qual as tarifas máximas do serviço público de energia elétrica são fixadas.

Assim, o regulamento da Administração ao tratar o associado da cooperativa como consumidor, obrigando a sociedade cooperativa a cobrar-lhe tarifa ela está, implicitamente, tratando o ato cooperativo como operação mercantil o quê, em outros termos, impõe a criação de um tipo de cooperativa que não pratica ato cooperativo; e, isso, a toda vista, é uma contradição em seus próprios termos, uma incongruência jurídica insuperável.

O que a regulamentação da Aneel fez configura, portanto, nesse ponto, pura e simplesmente a importação do regime jurídico aplicável às sociedades de capital (concessionárias), onde a arrecadação (aqui significando faturamento) é feita segundo regime da prestação do serviço não pelo custo, mas pelo preço: a Aneel estabelece as tarifas e o titular da concessão, por sua conta e risco, presta os serviços.

O regime pelo preço, então, é instituto jurídico integralmente distinto do rateio de custos, eis que, neste, concorrem para o seu dimensionamento i) a vontade dos associados; ii) sua aplicação se dá através de ato interno, a partir de decisão dos órgãos sociais da cooperativa.

Aquela importação, por essas razões jurídicas, há de ser tida, data vênia, como desfiguradora do ato cooperativo, um dos valores cooperativistas de mais alta valia, imprescindível para caracterizar a sociedade como sendo, de fato e de direito, uma sociedade cooperativa.

II.III- O ATO COOPERATIVO VIS A VIS OS CONCEITOS JURÍDICOS DE FATURAMENTO. SÍNTESE.

Parece pouco crível, senão completamente desarrazoada, aos que não mantém proximidade com o regime jurídico das sociedades cooperativas, a asserção segundo a qual tais sociedades “não têm receitas”.

Ocorre, nesse âmbito, que o vocábulo receita na sociedade de capital tem sentido jurídico patrimonial, isto é, trata-se de uma entrada de recurso financeiro na empresa, que dela se apossa e passa a fazer parte de sua vida patrimonial; ou, em outros termos, a entrada de receitas implica automaticamente acréscimo no patrimônio da empresa mercantil.

Tal não se dá no caso da sociedade cooperativa.

No caso da sociedade cooperativa, como visto, as entradas de recursos financeiros, advindas da contribuição dos associados, apenas transitam temporariamente pelo caixa da empresa, mas pertencem desde o início da operação, até seu final, exclusivamente ao sócio.

Ao se dizer que as contribuições financeiras dos associados, para que a sociedade cooperativa possa prestar-lhe os serviços objetos de sua finalidade social, apenas transitam temporariamente pelo caixa, se está a referir que a cooperativa utiliza-se desses recursos que, ao final do exercício social, retorna a ele associado, pertence, então, em outros termos, sempre a ele e não à empresa.

Isso é em tudo diverso do que seja a tarifa na sociedade mercantil prestadora de serviço público de eletricidade, onde o consumidor, uma vez tendo pagado a tarifa, nada mais tem a ver com o resultado financeiro apresentado pela concessionária.

Novamente, reprise-se, é importante notar que esses vocábulos receita e faturamento têm significados jurídicos próprios, e que são fundamentais, por exemplo, para as relações jurídicas da área tributária.

Vejam-se, a propósito, a título de exemplificação, os tributos PIS e COFINS. Os artigos 2º e 3º, e seu §1º, da Lei Federal nº 9.718/98, estabelecem que:

Art 2º- As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, devidas pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão calculadas com base no seu faturamento, observadas a legislação vigente e as alterações introduzidas por esta lei.

Art 3º- O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde a receita bruta da pessoa jurídica.

§ 1º- Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevante o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas.

Ora, é de se concluir que, não tendo a cooperativa (quando na prática do ato cooperativo) nenhum faturamento e nenhuma receita bruta, ela não é, nem poderia ser, contribuinte dessas exações fiscais.

Há torrencial entendimento jurisprudencial e doutrinário dando conta que o ato cooperativo não seria tributável, posto sua natureza não mercantil.

Neste campo argumenta-se que a sociedade cooperativa i) não tem receita bruta, ii) não tem faturamento, iii) não efetua operação de venda mercantil, etc.

O que se quis mostrar aqui é que para aqueles tipos especiais de tributos o Legislador reconheceu que ato cooperativo não gera faturamento, e que a sociedade cooperativa não tem receita bruta, daí não considerá-la contribuinte.

São exemplos significativos que demonstram a peculiaridade jurídica do que seja o ato cooperativo, em tudo diferente do conceito técnico de tarifas.

No espectro em que se encontram também estas razões jurídicas, das duas uma: ou a tarifa, cuja prática a ANEEL está impondo à cooperativa não é tarifa, ou o ato cooperativo que a cooperativa sempre praticou deixará de ser ato cooperativo.

II.IV- O ATO COOPERATIVO E A COMPRA E VENDA DE ENERGIA. FATURA.

É de conhecimento popular que as normas relativas à distribuição de energia elétrica no país definem que o consumidor de energia pagará uma tarifa como contraprestação ao seu consumo de energia elétrica.

O instrumento utilizado para obter essa receita é a fatura, que, segundo o art. 2º, XI, da Resolução nº 456/2000 da ANEEL, consiste na “nota fiscal que apresenta a quantia total que deve ser paga pela prestação do serviço público de energia elétrica, referente a um período especificado, discriminando as parcelas correspondentes.”

Pois bem, nota fiscal é definida tecnicamente como nota de venda, ou fatura, revestida de características próprias que propiciam, diretamente, o controle de operações de compra e venda, e, dentre outras, questões relacionadas com obrigações tributárias. 

Em outros termos, utiliza-se nota fiscal como instrumento para realizar a venda (alienação) de bem ou prestação de serviço, e também se prestando ao controle e arrecadação de tributos. Instrumento mercantil por excelência, portanto.

É dizer que o prestador de serviço público que se utilize de nota fiscal só pode ser uma empresa de capital/mercantil eis que, como visto, apenas uma empresa mercantil pode ter i) consumidor; ii) pode ter faturamento; e, iii) efetuar venda.

Em resumo, na medida em que um associado de cooperativa seja obrigado, como quer a Aneel, a pagar uma fatura, ou nota fiscal, como instrumento arrecadador de contribuições (ato cooperativo) dos associados, ter-se-á, de novo, das duas uma: ou a fatura não é fatura, ou a sociedade cooperativa não é cooperativa.

Resumindo tudo: o modelo de contrato de concessão (e todo o arcabouço legal que o disciplina) para a prestação de serviços públicos pelas concessionárias, bem como as regulamentações dos serviços e todas as demais que normatizam os serviços:

  1. Trata a empresa prestadora do serviço de eletricidade (concessionária) como empresa de capital, com objetivo de lucro;
  2. Trata o tomador de serviço como um consumidor;
  3. Para que isso ocorra, obriga o prestador de serviços (dentre muitas e muitas outras obrigações) a emitir faturas;
  4. Por conseguinte, dita empresa tem faturamento;
  5. O faturamento, já por força de obrigações legais outras, deve cobrir as despesas operacionais da empresa e propiciar lucros, de sorte a remunerar adequadamente o capital posto no serviço;
  6. O consumidor, tomador do serviço, responsabiliza-se apenas por pagar a fatura, sua obrigação jurídica inicia e termina na relação de consumo;
  7. As normas de prestação dos serviços de eletricidade estão conformadas pelo CDC, isto é, aplica-se, onde couber, as normas deste código nas relações de consumo de energia elétrica;
  8. A empresa prestadora do serviço opera segundo regime legal da prestação do serviço pelo preço.

Disso tudo se extrai claramente a dificuldade que é imaginar-se a aplicação de normas (que é o que a Aneel acabou fazendo) com essas naturezas jurídicas nas relações entre associados e suas cooperativas, isto é, nos atos que se caracterizem como sendo cooperativos, tendo em conta, como visto, que:

  1. A sociedade cooperativa não visa lucro;
  2. Ela opera segundo o regime da prestação de serviços pelo custo;
  3. Ela não tem receita (sentido técnico do vocábulo);
  4. Ela não tem despesas (sentido técnico do vocábulo);
  5. Ela não tem consumidor (sentido técnico do vocábulo);
  6. O ato cooperativo não é ato de compra e venda;
  7. Por isso, não deveria a cooperativa, para cumprir o ato cooperativo, emitir fatura;
  8. Sem emissão de faturas não existe faturamento;
  9. Sem faturamento não existe incidência de tributos cuja hipótese de incidência é o faturamento ou receita bruta;
  10. A relação cooperativa-cooperado, no cumprimento do objeto social, não é relação de consumo;
  11.  A cooperativa, portanto, não vende nada ao sócio;
  12. Não se aplicam às relações associados-cooperativa as normas do Código de Defesa do Consumidor.

São essas profundas diferenças jurídicas que permitem afirmar que a Aneel extrapolou, e muito, de suas atribuições, produzindo regulamentação que macula significativamente o regime jurídico das sociedades cooperativas, e, com isso, acaba por desrespeitar os comandos legais que lhe foram impostos.

As razões jurídicas que permitem essa conclusão estão até aqui demonstradas ao se examinar apenas alguns dos aspectos que a regulamentação da Aneel apresentou. Mas há muito mais. Muitas outras razões jurídicas permitem a mesma conclusão. É o que se verá a seguir.

III – REGIME JURÍDICO DA SOCIEDADE MERCANTIL ANTE O TRATAMENTO PATRIMONIAL ESTABELECIDO NA REGULAMENTAÇÃO DA ANEEL

Inicie-se este tópico explicitando qual o tratamento jurídico patrimonial que a ANEEL adota para valoração do patrimônio da sociedade mercantil (concessionárias de distribuição de energia elétrica) para, passo seguinte, se contrapô-lo com o quê essa Agência adotou na regulamentação da sociedade cooperativa.

Figure-se, para facilitar a compreensão, o seguinte exemplo:

– Uma empresa concessionária vai instalar hoje, início de um ano fiscal qualquer, um poste feito de concreto armado;

– O custo total dessa instalação, imagine-se, é de 100 Unidades Monetárias (UM);

Pois bem, esse ativo da empresa passa a ter o seguinte tratamento:

– registra-se na contabilidade da concessionária tal ativo no valor de 100 UM;

– ao final do primeiro ano da instalação, e de sua operação em serviço, o ativo sofre uma depreciação a uma taxa (meramente exemplificativa) de 4% ao ano. Dessa forma, dito ativo, no segundo ano de operação, passa a valer na contabilidade da empresa 96 UM;

– As 4 Unidades Monetárias correspondentes à depreciação são contabilizadas como sendo uma despesa para a sociedade mercantil, e isso significa, no mundo fático, que os consumidores de energia dessa concessionária, via tarifas que pagam, estão repondo (depreciando é o termo técnico correto) o capital empregado na instalação do poste ao empresário titular da concessão;

– Ainda, no final desse primeiro ano de operação, a ANEEL determina que a concessionária tem direito a uma determinada remuneração ao capital que investiu na instalação do poste. Essa remuneração se dá através da aplicação de uma taxa de remuneração que é denominada WACC – Weighted Average Capital Cost (Custo Médio Ponderado do Capital), que vem a incidir sobre o valor ano a ano do poste;

– Assim, supondo que essa taxa tenha sido determinada pela Aneel como sendo 7% ao ano, a concessionária teria direito a ser remunerada em 7 Unidades Monetárias no primeiro ano; valor que, também, é pago ao empresário pelos consumidores de energia da concessionária através das tarifas;

– Inicia-se então o segundo ano de operação do poste, aplicando-se novamente a taxa de depreciação, agora sobre o valor de 96 UM; e, sobre esse valor também incidirá novamente a taxa de remuneração; e, assim sucessivamente para os demais anos subsequentes ao que se instalou o poste.

O ciclo de sucessivas depreciações e remunerações terminará no final do 25º ano de operação do poste, data a partir da qual ele passa a ter valor de zero Unidade Monetárias na contabilidade da empresa; e as 4 unidades monetárias do seu valor contábil residual serão, então, as últimas a serem remuneradas.

Assim, no 26º ano o poste continuará instalado, mas ele não terá mais nenhum valor contábil, dir-se-á que se trata de ativo inteiramente depreciado, ou 100% depreciado.

Por consequência seu valor deixará de ser remunerado, eis que valor contábil já não tem mais.

Vide, então, que se trata de um ciclo de amortizações do capital investido e de remunerações.

E, sobretudo, vide que se cuida de um ciclo perfeito do ponto do vista lógico: o capital investido retorna ao capitalista investidor, e durante todo o tempo em que esteve a serviço da concessão foi devidamente remunerado.

Nenhum reparo, portanto, há para se fazer em relação ao interesse e direito do investidor-concessionário: o seu capital retorna ao seu bolso; e, enquanto esteve empregado na concessão, lhe gerou os lucros (remuneração ao seu investimento) pactuados com a União através do contrato de concessão.

Se o poste/ativo foi inteiramente depreciado, e remunerado o capital aplicado em sua instalação, o investidor nada tem mais a reclamar.

Todavia, se o poste ainda tivesse algum valor, como por exemplo 20 UM, e nesse ano a concessão fosse extinta por decurso de prazo, sabe-se que esse seu valor deveria ser pago pela União, ao concessionário,   face a aplicação do instituto da reversão: o ativo pertencerá à União, que por ele pagará o valor justo (de 20 UM) ao concessionário, e este último irá se retirar da prestação dos serviços  até então contratados.

Todo esse raciocínio ilustrativo feito para o caso de um poste valerá também para cabos condutores de energia, transformadores, medidores de energia, etc, valerá, enfim, para qualquer ativo que seja colocado em serviço pelo concessionário, valerá para a todas as linhas de distribuição de energia, para as subestações, em suma, para todos os equipamentos e materiais que a engenharia utiliza para a distribuição de energia elétrica.

Agora atenção!!

Pergunta-se: estando o poste já inteiramente depreciado ele será retirado do serviço e substituído por outro?

Ou, perguntando de outra maneira, o poste, pelo fato de ter tido depreciado inteiramente seu valor na contabilidade do concessionário, perde também a sua utilidade, a ponto de ser necessária a sua retirada do serviço?

Ainda que essa pergunta seja feita ao leigo, desde que esse leigo tenha nível mediano de elaboração intelectual, que seja o que, em doutrina, se conhece como homem médio, a sua resposta será um rotundo ‘não’.

E ‘não’ será a resposta porque o poste de concreto tem vida útil muito maior que 25 anos.

O homem médio, certamente, terá visto postes de concreto armado instalados na rua em que mora, ou na rua em que mora sua mãe, ou amigos, há mais de 25 anos em perfeito estado de funcionamento. Terá visto pontes de concreto armado que foi construída e está operando normalmente há muito mais de 25 anos. Terá visto edifícios construídos com concreto armado em operação há mais de 25 anos, e assim por diante.

A data em que se dá a sua perda total de valor na contabilidade, essa é a conclusão, não coincide com a data em que expira a sua vida útil.

Por essa razão tanto faz que esse poste fosse depreciado integralmente na contabilidade em 20 anos, ou 25 anos, ou 100 anos.

Fosse qual fosse o período adotado pelo manual de contabilidade do serviço público de distribuição de energia elétrica no Brasil para as empresas concessionárias mercantis, o fato é que o seu valor retornaria ao investidor e seria devidamente remunerado enquanto estivesse sendo depreciado.

IV – REGIME JURÍDICO DA SOCIEDADE COOPERATIVA FACE SEU ATUAL TRATAMENTO PATRIMONIAL

Uma cooperativa que presta serviço de distribuição de energia aos seus associados, ainda que a prestação se faça em regime de direito privado, isto é, sem regulamentação pública, também adota critérios contábeis que tomam em consideração a depreciação dos ativos que coloca nos serviços.

Ela deve necessariamente ter um regime jurídico contábil porque assim as leis brasileiras determinam, e determinam não só às cooperativas, assim também o fazem para toda e qualquer sociedade de natureza mercantil, conforme preceito insculpido no Art. 1179 do Código Civil.

Verifica-se também a obrigatoriedade da sociedade cooperativa manter sistema contábil por simples consulta ao Art. 44, e seus incisos, da Lei 5764/71, onde se estabelece que a assembleia geral ordinária deve analisar as contas da sociedade, sua gestão, seu balanço, etc.

De sorte que a cooperativa que sempre operou em regime de direito privado irá adotar taxas de depreciações contábeis, por exemplo, 5% ao ano para um poste de concreto.

Assim, um poste que foi instalado no ano de 1990, há 28 anos atrás, tem seu valor como sendo zero reais na contabilidade da cooperativa em 2018, ou seja, é um ativo 100% depreciado.

Aqui, tanto quanto no caso da empresa concessionária, a contabilidade registra então, em contas próprias, qual o valor total dos ativos que já se encontram 100% depreciados, e qual o valor total dos ativos cujas depreciações se encontram em curso.

Portanto, em aparência, não existem diferenças jurídicas importantes entre esses dois regimes jurídicos contábeis.

Mas elas existem e é fundamental que se entendam corretamente as particularidades técnicas de cada caso na esfera da regulamentação ora examinada.

Confiram-se.

Ao instalar o poste, tomando-se de volta o exemplo ilustrativo acima, o empresário titular da concessão tirou do seu bolso o dinheiro para isso, isto é, ele investiu recursos próprios nessa instalação. Mas quem devolveu (via depreciação) a ele o valor do poste foram os consumidores da concessionária que, em relação ao investidor, são terceiros.

Assim também esses terceiros consumidores remuneraram tal investimento, de modo tal a satisfazer integralmente o interesse e direito do capitalista tendo-se em conta que ele receberá de volta o que investiu, e também terá seu lucro assegurado pela remuneração ao ativo que colocou no serviço.

Já no caso da cooperativa, existem duas diferenças jurídicas significativas, a saber:

– é o próprio associado que investe da colocação do poste e que ademais compra veículos, que contrata engenheiros, que instala subestações, em resumo, é o associado que é proprietário de todo e qualquer ativo posto no serviço. Não existe aqui um terceiro para lhe devolver o valor investido na instalação do poste, já que ele, o associado é que é, também, o tomador do serviço que lhe presta a sociedade, e que, de resto, lhe pertence como um todo;

– dadas as características próprias do seu regime jurídico a cooperativa não tem também terceiros para lhe remunerar os investimentos. Alias, não há sentido algum em se falar em remuneração ao capital investido neste tipo de sociedade porque os associados estariam se auto remunerando, isto é, em português nada coloquial: tirando dinheiro do bolso esquerdo para colocar no direito.

Disso se extrai conclusão que importa conhecer: o investidor capitalista não tem nenhum direito remanescente em relação ao valor contábil registrado na conta dos ativos tidos como 100% depreciados. Tal valor não lhe pertence mais, independentemente se esses ativos continuem instalados e sendo utilizados na prestação dos serviços.

Tal não se dá com os ativos 100% depreciados na sociedade cooperativa. Aqui esses ativos estão em uso, e tem valor porque tem vida útil, porque podem e devem continuar sendo utilizados.

A finalidade da depreciação, no caso da cooperativa, por ser considerada um item de custo, tem finalidade outras como, por exemplo, apuração de resultado ao final do exercício social, ou para apuração de eventuais valores de interesse na seara tributária, etc.

O que se quer fazer entender é que no caso do capitalista investidor ele não terá mais nenhum direito sobre ativo 100% depreciado, ao passo que na cooperativa tais ativos tem valor de conformidade com sua possibilidade de continuar sendo utilizado, ou seja, seu valor real prende-se exclusivamente a sua vida útil. Mais adiante se voltará ao tema para melhor compreensão da importância dessas diferenças.

V – ALIENAÇÃO DE ATIVOS ENTRE EMPRESAS MERCANTIS DISTRIBUIDORAS DE ENERGIA ELÉTRICA EM REGIME DE DIREITO PÚBLICO

Em regiões de fronteiras de áreas geográficas de concessões é comum uma concessionária atender consumidores de energia no território de outra, sua vizinha.

Isso ocorre porque a titular do território atendido não tinha linha de distribuição por perto para assumir os serviços. Diz-se, no caso, que a concessionária que realiza o atendimento o faz a título precário.

A titular da concessão, uma vez estendendo suas redes até aquela localização, deve passar a assumir os serviços de distribuição mediante pagamento dos ativos que a outra concessionária havia disponibilizado para isso.

A questão jurídica que surge então é: qual o valor legal que se deve atribuir aos ativos que se encontram em serviço?

Ou, fazendo a pergunta de forma diferente: para que as leis vigentes, que regulam a prestação dos serviços públicos de eletricidade, sejam atendidas qual o valor que uma concessionária deve pagar a outra?

A resposta é uma e somente uma: a concessionária vendedora deve cobrar e receber da compradora exatamente o valor contábil dos ativos.

Mais um exemplo auxiliará na elucidação deste ponto.

Figure-se que o valor total dos ativos constantes da contabilidade da concessionária vendedora (já deduzidas todas as depreciações) seja de 100 Unidades Monetárias.

Isso quer dizer que esse é o valor que o investidor ainda não recebeu (não foi depreciado e nem amortizado), via tarifas, dos consumidores da concessionária vendedora.

De modo que se a concessionária vendedora cobrasse por ele 120 UM, isso significaria que estaria se enriquecendo sem causa, possibilidade que agride o direito, face o que dispõe o Art. 884 do Código Civil.

E, de igual modo, para a concessionária compradora a operação seria também ilegal. Isso porque seus consumidores teriam que pagar tarifas mais altas para depreciar as 20 UM exorbitantes, assim também remunerar essas 20 UM.

A concessionária compradora não poderia pagar 120 UM, porque o sobre preço fere norma legal que preceitua que as tarifas devem ser módicas, conforme estabelece o Art. 6º da Lei das Concessões (Lei Federal nº 8.987/1995):

Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

        § 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

A conclusão evidencia-se: quando i) empresas mercantis, ii) que já operam em regime de direito público, iii) efetuam entre si compra e venda de ativos, iv) elas só podem fazê-lo, sob pena de incursão em ilegalidades, pelo preço contábil de tais ativos.

VI- A REGULAMENTAÇÃO DO PATRIMÔNIO DA SOCIEDADE COOPERATIVA ESTABELECIDA PELA ANEEL PARA O INÍCIO DE SUA OPERAÇÃO EM REGIME DE DIREITO PÚBLICO

A regulamentação que a Aneel impõe às cooperativas com vista a outorgar-lhes a permissão para prestação dos serviços de eletricidade em regime de direito público, no que diz respeito à valoração dos ativos dessas sociedades, em resumo, é a seguinte:

– A Aneel verifica examina o balanço anual da cooperativa, enquanto operava em regime de direito privado;

– Nesse balanço consta qual o valor dos ativos 100% depreciados e qual o valor dos ativos em depreciação;

– A Aneel, a partir de informações prestadas pela cooperativa, apura qual a quantidade de cada tipo de ativo (postes, condutores, medidores, etc);

– De posse dessas quantidades a própria Aneel é que calcula as suas valorações, ou seja, a Aneel tem um banco de preços que usa para valorar cada tipo de ativo de modo a encontrar o valor total das redes de distribuição da cooperativa que está sendo regulamentada;

– Esse valor total é denominado VNR- Valor Novo de Reposição que, na opinião da Aneel, é o valor que se gastaria agora, quando da regulamentação, para se instalar todos os ativos que a cooperativa lhe teria informado como estando instalados e em operação. Trata-se, portanto, de uma estimativa de valor total de todo o sistema de distribuição de energia no estado de novo;

– Finalmente, para se saber quanto desse valor total estaria 100% depreciado e quanto estaria em depreciação a metodologia da Aneel segue o seguinte caminho:

i) Verificaria no balanço da cooperativa qual o percentual dos ativos estariam 100% depreciados, e qual o percentual estaria em depreciação, isso em relação ao valor total dos ativos mostrados em sua contabilidade, e;

ii) Em seguida aplicaria esses 2 percentuais no valor do VNR que essa Agência teria calculado como o valor total novos dos ativos da cooperativa.

Dessa forma a Aneel encontraria, em reais, qual o valor 100% depreciado e o valor com depreciação em curso, e esses dois valores é que serviriam para os cálculos subsequentes da chamada base de remuneração, e que, também, tem reflexo fundamental em outro tema de interesse da regulamentação: a reversão dos ativos.

Aponte-se, finalmente, que os dados relativos aos valores patrimoniais são necessários conhecer para servirem no dimensionamento das tarifas através das quais a cooperativa iria operar quando regulamentada como prestadora de serviços públicos.

VII – O PRIMEIRO ANO DE OPERAÇÃO EM REGIME DE DIREITO PÚBLICO

Note-se que a sequencia de procedimentos que a Aneel adota em seu processo de regulamentação estabelece que uma vez fornecidos os dados acima mencionados, dentre outros mais, são calculadas pela agência as tarifas para a cooperativa.

Essa Agência calcula tanto as tarifas com as quais a cooperativa deverá comprar energia elétrica, quando as tarifas que a cooperativa deverá cobrar dos seus associados.

Constate-se as seguintes passagens da regulamentação da Aneel, trazidas em sua Nota Técnica 375, de 2017:

73. No processo de regularização de cooperativas como permissionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica podemos distinguir três marcos principais: i) homologação da área de atuação; ii) homologação das tarifas iniciais de suprimento; e iii) fornecimento e assinatura do contrato de permissão.

74. Portanto, para sua regularização, todas as etapas devem ser concluídas, sendo a assinatura dos contratos o passo posterior à definição de sua tarifa, e sua adesão ao ambiente regulado se dará quando seu Contrato de Permissão for assinado.

75. Dessa forma, como resultado final da Audiência Pública, serão fornecidos às cooperativas o contrato de permissão e as tarifas iniciais, após a análise final das contribuições. Caso não seja aceito o contrato ou as tarifas iniciais por alguma cooperativa, inicia-se o processo de declaração de utilidade pública da área anteriormente homologada. Posteriormente, a área deverá ser licitada ou incorporada pela supridora local, conforme decisão a ser analisada ainda pela ANEEL.” (sem ênfases no original)

Vê-se que as normas são claras e impositivas: calculadas as tarifas as cooperativas estariam obrigadas a, ou assinar o contrato de permissão, ou serem extintas pela Aneel.

Explica-se: ao afirmar em sua regulamentação que a cooperativa que se recusar a assinar o contrato de permissão teria extinta a outorga da área geográfica onde atua ela, a Aneel, em outros termos estaria, passo seguinte, escolhendo outro prestador de serviço públicos para essa área o quê, por conseguinte, significaria a extinção da cooperativa por perda total de objeto.

Em resumo: ou assina, ou é extinta. Tal é a regra.

Nesse contexto regulatório, é facilitado e firme o entendimento segundo o qual a assinatura desse contrato de permissão, aplicando-se a atual regulamentação da Aneel, configuraria lesões a direitos dos associados.

A questão patrimonial acima explicitada é um dos claros exemplos disso.

O patrimônio da cooperativa, seus ativos postos em serviço, não pode ser valorado pelos seus valores contábeis como impõe a Aneel.

Isso porque ela nunca esteve operando em regime de direito público e, assim sendo, nunca existiram terceiros que amortizassem seus investimentos, nem nunca houve terceiros que lhe remunerassem investimentos.

Sabendo-se que os ativos em operação tem vida útil para além da vida contábil, infere-se que todo ativo em serviço tem valor real a ser valorado no caso da cooperativa, antes que ela adentre na operação em regime de direito público.

Ativo que está instalado, e em operação, nas redes da cooperativa não pode ser admitido como tendo valor zero no momento da assinatura do contrato de permissão pela razão inegável de que, se está em operação, tem vida útil e, posto isso, tem valor real.

A regulamentação da Aneel ao solicitar laudo de quantidade de ativos da cooperativa que estivessem em operação, para em seguida afirmar que uma percentagem deles estaria 100% depreciada, configura uma contradição em seus próprios termos.

São postes, isoladores, cabos e equipamentos com mais de 20 anos de uso, e seus valores são zero na contabilidade da cooperativa, mas ninguém jamais poderá dizer que seus valores são zero quando de uma eventual venda a uma concessionária local, ou uma desapropriação pelo poder público, ou porque a cooperativa tenha que assinar um contrato de permissão para adentrar a um primeiro ano como distribuidora em regime de direito público.

O que a regulamentação estabelece é, na verdade, a aplicação à cooperativa, que nunca operou em regime de direito público, as mesmas normas jurídicas aplicáveis à aquisição de ativos entre duas concessionárias que, desde sempre, atuaram em regime de direito público quando uma adquire ativos da outra, conforme explicitação e exemplificação acima mostrada.

Então, resta claro que o regime entre prestadoras de serviços públicos não se aplica ao caso da cooperativa quando do seu ingresso no primeiro ano como permissionária.

Repita-se: o regime não se aplica quando do ingresso da cooperativa no primeiro ano como permissionária de serviços públicos de distribuição de energia.

Mais uma vez, um exemplo, auxiliará na compreensão.

Suponha-se que uma determinada concessionária necessite adquirir um grande transformador de distribuição, e uma grande indústria tenha um, usado, e disponível para a venda.

Se esse transformador estava instalado há mais de 20 anos a concessionária pretende compra-lo e não pagar nada por ele, alegando que, segundo o plano contábil da Aneel, ele já estaria 100% depreciado. 

A pretensão é tão risível quanto absurda, porém é exatamente isso que a Aneel estaria fazendo com os ativos da cooperativa a ser regulamentada: de igual modo trata-se de uma empresa inteiramente privada, tal qual a indústria desta ilustração.

É vedado à União, neste caso, apropriar-se dos ativos da cooperativa porque estaria, de forma obliqua, praticando uma desapropriação que, mesmo com a finalidade de utilidade pública, ainda que fosse cabível, não poderia ser feita sem indenização justa, conforme disposição do Art. 5º, Inciso 24 da Constituição Federal.

E de remuneração justa não se estaria tratando quando se sabe, de antemão, que parte substancial do patrimônio passaria a pertencer á União tão logo a cooperativa assine o contrato de permissão.

Essa é mais uma incompatibilidade jurídica a se anotar: absoluta impossibilidade de importação do regime jurídico-contábil das concessões outorgadas às empresas mercantis para ser aplicado ao caso da regulamentação das sociedades cooperativas.

E que o leitor tenha como certo que trata-se de questão importante, haja vista que as cooperativas que já assinaram o contrato de permissão, acabaram doando o patrimônio dos seus associados, que montam a centenas de milhões de reais…

A solução correta para o caso seria a elaboração de laudo de avaliação do patrimônio total da cooperativa, que tomasse em conta a vida útil de todos os bens, que tomasse em conta o ambiente em que estão operando (verificação, por exemplo, de salubridade), verificação da qualidade da manutenção dada, etc.

O valor apurado em laudo técnico assim elaborado serviria, então, para que a Aneel fizesse os cálculos tarifários e outros.

A partir de uma valoração justa, significando valoração que reflita o real valor dos ativos, é que, do primeiro ano e seguintes em que a cooperativa viesse a operar em regime de direito público, aí sim, as normas de depreciação da Aneel, poderiam ser aplicadas sem incorrer nas ilegalidades apontadas.

VIII – A REVERSÃO. REGIME JURÍDICO INAPLICÁVEL

A cláusula 21ª do contrato de permissão assinado pelas cooperativas estabelece a obrigatoriedade de se observar a reversão dos ativos, que de resto é instituto de amplo conhecimento na esfera do direito administrativo, vide:

Subcláusula Primeira – Extinta a permissão, operar-se-á, de pleno direito, a reversão, ao PODER CONCEDENTE, dos bens e instalações vinculados ao serviço, procedendo-se aos levantamentos e às avaliações, bem como a determinação do montante da indenização devida à PERMISSIONÁRIA, observados os valores e as datas de sua incorporação ao sistema elétrico.

Subcláusula Segunda – O valor de indenização dos bens reversíveis, ainda não amortizado ou depreciado, será aquele resultante de inventário procedido pela ANEEL ou preposto especialmente designado, e seu pagamento realizado, na forma da lei e dos regulamentos estabelecidos pela ANEEL e pelo Poder Concedente, depois de finalizado o processo administrativo e esgotados todos os prazos e instâncias de recurso.

O valor da indenização, é isso o que fica estabelecido no contrato acima transcrito, a ser paga à cooperativa quando da reversão, corresponde ao valor contábil dos ativos que, quando da extinção da permissão, seja por qual motivo for, ainda não estivessem depreciados e amortizados.

Trata-se, portanto, do valor contábil dos ativos, a ser apurado tal como descrito acima em item anterior.

Em 1957, o Decreto Federal nº 41.019 criou a RGR – Reserva Global de Reversão, que, conforme seu artigo 33, tinha “por fim prover recursos para indenizar o concessionário pela reversão dos bens e instalações do serviço, ao fim da concessão”.

Desde esse ano a RGR vem sendo cobrada das concessionárias de distribuição de energia (que, ao final, trata-se de encargo financeiro que se consubstancia em um custo de distribuição de energia e, bem por isso, repassado aos consumidores via tarifas), e passou a ser um encargo setorial a ser pago também pelas cooperativas que viessem a ser regulamentadas como prestadoras de serviços públicos.

Atualmente esse encargo se presta também a financiar projetos de interesse do setor elétrico brasileiro, além da finalidade primeira que era prover recursos à União para fins indenizatórios quando das reversões.

O que importa juridicamente perceber é que são os consumidores de energia das concessionárias mercantis quem pagam o encargo, a concessionaria apenas o recolhe e o repassa à União.

Há, então, clara diferenciação entre as partes envolvidas: o empresário titular da concessão nada despende quando da reversão, ou seja, ele recebe o valor dos ativos não depreciados e não amortizados da União que, por sua vez, utilizou-se para isso de recursos advindos da Reserva Global de Reversão.

Já a reversão prevista no contrato de permissão da cooperativa trás diferença jurídica significativa: é o próprio associado quem pagará a Reserva Global de Reversão e é ele que, também, é o dono dos ativos e titular da permissão.

Uma vez entendido o regime jurídico da sociedade cooperativa é de se concluir que a importação do regime jurídico da empresa mercantil concessionária, no que respeita à reversão, para ser aplicado às permissões a serem outorgadas às cooperativas promove nova ilegalidade.

É que não faz sentido algum o associado mandar, mês a mês, recurso financeiro para a União, para que a União devolva-lhe o mesmo dinheiro para ‘indenizar-lhes’, os ativos a serem revertidos.

Ou seja: no caso da reversão estabelecida no contrato de permissão (praticamente cópia do contrato de concessão das concessionárias) a União não estaria indenizando coisa alguma: os ativos sempre pertenceram ao associado, assim também o recurso financeiro com o qual a União lhe ‘indenizaria’.

A situação fática a ser entendida aqui é a mesma que se teria em um caso de compra e venda de um bem qualquer, em que o vendedor emprestasse o recurso financeiro para o comprador que, de posse dele, lhe pagaria o preço: ao comprador seria passado o domínio do bem, e o adquirente, de fato, nada teria pagado por ele!!

Ante essas características peculiares do regime jurídico da sociedade cooperativa, a solução adequada ao caso seria:

– que ao final da concessão, para fins da indenização, os ativos em serviço fossem avaliados em laudo pericial que tomasse em conta a sua vida útil, a qualidade da manutenção, a salubridade ambiental, etc, e não o valor contábil;

– que a União despendesse, então, recursos próprios para a indenização; e, nunca, recursos dos próprios associados que fossem a ela transferidos a título de RGR tal qual a atual regulamentação preceitua.

IX – PERMISSÃO. TÍTULO PRECÁRIO. REVOGAÇÃO

O contrato de permissão, instrumento para o trespasse do serviço publico à sociedade cooperativa, estabelece em sua Cláusula Segunda que os serviços estariam sendo permitidos ‘a título precário’, vide:

Este Contrato institui e regula a permissão do PODER CONCEDENTE à PERMISSIONÁRIA, individualmente e sem caráter de exclusividade, para a exploração, a título precário, de serviço público de distribuição de energia elétrica, na área de permissão definida na Cláusula Terceira deste Contrato.

Ao mesmo tempo, sua Cláusula Vigésima atribui à Aneel o poder de extinguir o contrato por revogação, constate-se:

A permissão para exploração do serviço público de distribuição de energia elétrica regulada por este Contrato será considerada e declarada extinta, observadas as normas legais específicas, nos seguintes casos:

(…)

V – revogação

É de conhecimento amplo da comunidade jurídica que a permissão, se dotada de precariedade, pode ser extinta a critério exclusivo da Administração Pública, mediante justificativa de necessidade de atendimento ao interesse público.

Também está bem sedimentado o entendimento de que, no âmbito do Direito Administrativo, a precariedade presente na permissão tem como elemento caracterizador que a Administração proceda a extinção na modalidade revogação a qualquer tempo, e independentemente de indenização.

Nesse sentido:

a precariedade que caracteriza a permissão de serviço público deve ser entendida como algo a mais e, se não está na possibilidade de revogação unilateral, porque presente em todos os contratos administrativos, certamente atinge os efeitos da extinção extemporânea. Em razão dessa precariedade, se a permissão for extinta antes do decurso do prazo estabelecido, o permissionário não terá direito a receber indenização (OLIVEIRA, 2003, p. 100) (sem ênfase no original).

No mesmo sentido é a lição de Luis Alberto Blanchet (BLANCHET, 1995, p. 23):

Como a permissão caracteriza-se pela discricionariedade e precariedade, forçoso é concluir que a assunção pelo permissionário de custos decorrente de obra (que, por sua natureza inviabiliza a retirada) resultaria em funestas consequências para o outorgado caso o permitente decidisse retomar a prestação do serviço delegado, pois a extinção da permissão não obriga o poder público a indenizar o permissionário.

No caso sob exame a permissão tem natureza contratual, e os serviços de distribuição de energia exigem vultosos investimentos; e, posto que é assim, o contrato que a estabelece não pode ser equiparado aos atos unilaterais e precários comumente utilizados pela Administração, vg, para permitir que a banca de jornais se instale na calçada da esquina.

De modo que precariedade e possibilidade de extinção por  revogação em contrato dessa magnitude configuram normas inter partes que ofendem ao direito.

X – FRUIÇÃO DOS SERVIÇOS. FIDELIDADE

A sociedade cooperativa, para viabilizar sua atuação, tem como princípio exigir fidelidade do associado. Não são raros os estatutos que estabelecem regras de só atender com serviços de eletricidade aqueles que se associarem à cooperativa de energia. Isso significa que aquele que pretende associar-se passa a ter a obrigação social de ser fiel em relação ao serviço prestado pela sua cooperativa, sendo-lhe defeso escolher ora a cooperativa, ora outra sociedade comercial para prestar-lhe os serviços objetos da sociedade cooperativa a qual se associou.

Em outros termos: o cooperativismo repudia o sócio de ocasião, o sócio oportunista.

Na construção do cooperativismo sadio, em outras palavras, o que se busca é o aperfeiçoamento da verdadeira cooperação, onde o interesse individual não deve se sobrepor ao interesse coletivo.

Nesse sentido colhe-se posição de (FRANCO in GONÇALVES NETO, 2018, p. 156):

(…) a realização de atos cooperativos pode ser posta como um dever do sócio-cooperado, já que é por meio de tais atos que o sócio contribui para a consecução da atividade econômica da cooperativa e, ao mesmo tempo, usufruí dos serviços e utilidades por aquela. Soma-se a isso que, nas cooperativas, diferentemente das demais  sociedades , o dever do sócio de contribuir com bens e serviços para o exercício da atividade econômica, não se esgota no momento da integralização do capital social. Nas cooperativas, a contribuição do sócio deve ser constante, diuturna, para que a finalidade que anima a constituição da cooperativa possa se realizar, sob a forma de benefícios aos cooperados, que são disponibilizados prioritariamente por meio dos atos cooperativos.

No entanto, a fidelidade não é requisito observável quando se trata de distribuição de energia elétrica pelas sociedades mercantis posto que, aqui, o regime é puramente jurídico e estabelece a não exclusividade, significando que existem certos tipos de consumidores de energia que poderão escolher de quem adquirir esse bem e serviço.

Tratam-se dos chamados ‘consumidores livres’ a quem a lei confere o direito de escolha.

Esse direito, dentro da atual regulamentação, está facultado ao associado da cooperativa através da seguinte norma constante do contrato de permissão:

CLÁUSULA SEGUNDA, Subcláusula Única – Respeitados os contratos de fornecimento vigentes, a permissão regulada neste Contrato não confere à PERMISSIONÁRIA direito de exclusividade relativamente aos consumidores de energia elétrica que, por força da Lei no 9.074, de 1995, possam adquirir energia elétrica de outro fornecedor.

O Parágrafo Segundo do Art. 23 da lei 9074, como se viu acima, dita preceito segundo o qual a regulamentação deveria ser elaborada preservando as “peculiaridades associativistas” das cooperativas, de modo que, ao dar ao sócio o direito de praticar o principal ato cooperativo com outro fornecedor do serviço, se está ante uma inegável incongruência, tendo-se na devida conta que a peculiaridade associativista primeira é, no mínimo, a de se manter associado!

XI – PRAZO DA PERMISSÃO

Mais uma questão importante tem tratamento diverso quando enfocada segundo o regime jurídico das sociedades cooperativas e as sociedades mercantis regulamentadas como prestadoras de serviços públicos de distribuição de energia elétrica: trata-se do tempo designado para a prestação desses serviços.

O contrato de permissão elaborado pela Aneel estabelece o prazo de 30 anos em sua cláusula sexta, nos seguintes termos: A permissão objeto deste Contrato terá prazo de até 30 (trinta) anos, podendo ser prorrogado por igual período, a juízo do poder concedente, contado a partir da data de sua celebração.

Esse prazo está estipulado na Lei Federal nº 9.074/95, como sendo o prazo de duração das concessões de serviços públicos na área específica de distribuição de energia. Trata-se, portanto, de norma geral, aplicável a qualquer tipo de sociedade.

É de se ter em conta, porém, que para a sociedade cooperativa, a sua lei de regência estabelece que é o estatuto da sociedade que deverá estabelecer tal prazo, vide seu Art. 21: O estatuto da cooperativa, além de atender ao disposto no artigo 4º, deverá indicar: I – a denominação, sede, prazo de duração, área de ação, objeto da sociedade, fixação do exercício social e da data do levantamento do balanço geral.

Portanto, o prazo de duração para que a cooperativa preste serviços aos seus associados é aquele que seu estatuto especificar.

Em suma: há tratamento claramente divergente entre o que dispõe o regime jurídico das sociedades cooperativas e aquele adotado pela regulamentação federal.

XII – REMUNERAÇÃO DE CAPITAL

A regulamentação da prestação dos serviços de distribuição de energia pelas empresas mercantis no Brasil tem como nota marcante a forma como se calcula a remuneração da concessionária. O modelo adotado estabelece, em síntese, que essa remuneração é dimensionada pela aplicação de uma taxa percentual que incide sobre o valor dos ativos postos no serviço de distribuição.

Essa taxa é determinada pela Aneel e chamada WACC (vide item IV, supra) e representa, na realidade, o percentual que o Concedente entende adequado para remunerar o capital que o investidor está empregando na concessão.

O importante, neste ponto, é que se entenda que por se tratar de serviço prestado com a finalidade de obtenção de lucro nada há a se questionar: se o prestador do serviço entende que essa remuneração atende seus interesses, então que assim seja.

Mas esse não é o caso da sociedade cooperativa. Como se viu acima, e é de amplo conhecimento, nesse tipo de sociedade não se persegue a obtenção de lucro.

A única ressalva que a lei 5764/71 faz é que a sociedade cooperativa pode pagar remuneração às quotas de capital que o associado detém em sua cooperativa. Quotas de capital social não se confundem com o valor dos ativos postos em serviço, assim também a taxa deve ser fixada em no máximo 12%, tratando-se também de percentual que não guarda nenhuma correlação com a WACC.

É importante notar que a remuneração sobre as quotas partes do capital do associado nada mais é do que a aplicação de partes das sobras que a sociedade obteve em determinado exercício social, visto que os associados tem o direito de dar-lhes destinação: podem aplicar em melhorias do serviço, ou em expansão das redes para atendimento de novos associados, ou em programas de utilização racional de energia, etc, assim como podem destinar parte dessas sobras para aumentar ou remunerar as quotas partes do capital de cada sócio na sociedade.

A aplicação da WACC tem sentido completamente diferente: trata-se na realidade de remunerar o capital empregado pelo investidor concessionário, o que nada mais representa que a parcela de lucro que ele realmente terá por ter investido seu capital no serviço de distribuição de energia elétrica.

Note-se, por fim, que a Aneel, ao determinar que a sociedade cooperativa cobre do seu associado a remuneração do capital investido, está impondo à sociedade um custo a ser pago (via tarifas) que se mostra desnecessário e inconsistente com o regime jurídico da cooperativa, além de, por decorrência, criar outros custos indevidos. Explica-se.

À primeira vista pode parecer que a remuneração do capital é indiferente de ser cobrado porque o seu valor monetário iria aparecer ao final do exercício como sobras e, desse modo, pertenceria ao associado. No entendo, a remuneração aos investimentos, ao compor as tarifas, fazem incidir sobre elas vários tributos como, principalmente, o ICMS.

De modo que inflar as tarifas, desnecessariamente, trás consequências indesejáveis aos associados posto que se veriam obrigados a arcar com custos tributários desnecessários e ilegais.

Mostra-se, mais uma vez, que a regulamentação que a Aneel produziu contém total incompreensão do que seja a sociedade cooperativa, haja vista que padece de sentido que se dimensione tarifas de modo que o associado se auto remunere, considerando-se que ele é o próprio dono dos ativos a serem remunerados por ele mesmo.

XIII – REGULAMENTAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA. MATÉRIA CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL

A cooperativa de energia deve comprar um volume grande de energia, e presta ao associado o serviço completo de eletricidade, fazendo chegar a todos eles energia elétrica e manutenção de alta qualidade.

Percebe-se, então, que se trata de uma cooperativa do tipo consumo: prestando-se a adquirir um bem da vida para repassá-lo aos associados. Ela é a compradora desse bem (energia elétrica) e só o adquire em nome dos associados, segundo seu regime jurídico próprio.

Ao adquirir energia para poder prestar os seus serviços aos associados a cooperativa deve pagar tarifas de aquisição, denominadas tarifas de suprimento, para a concessionária sua supridora.

Estas tarifas são dimensionadas e determinadas pela ANEEL, segundo critérios que ela elabora na regulamentação que vem sendo construída.

Pois bem, o que a cooperativa faz em todo o país é: adquirir energia elétrica da concessionária, e agregando seus custos operacionais (para construir, operar e manter suas redes de distribuição), prestar os serviços de energia aos seus cooperados.

Ou seja, o rateio do qual se falou acima fica agora claro de ser visualizado: os custos operacionais (aquisição de energia mais os demais custos de manutenção e operação de suas redes) são repassados aos cooperados.

E aqui reside o problema tarifário com o qual convivem as cooperativas de energia do Brasil e seus associados: a cooperativa já, em muitos casos, é obrigada pela ANEEL a adquirir energia em valores muito próximos à tarifa rural que é determinada, também pela ANEEL, para ser cobrada dos consumidores das concessionárias supridoras de mesma classe.

Por conta disso, ao acrescentar os custos operacionais e fazer o rateio, o custo do serviço pode ficar (para o cooperado) maior que a tarifa paga pelo consumidor rural da concessionária local. E, isso, a par de ser por si só uma injustiça, constitui-se também em uma ilegalidade, como se verá á frente.

Diferentemente de uma empresa concessionária, que atende ao melhor mercado, para uma cooperativa de eletrificação rural é destinado o atendimento do mercado mais dispendioso: o mercado rural e ou interiorano.

De fato, há que se entender que uma concessionária atende a área urbana, atende os grandes mercados comerciais e industriais (é dizer que o consumo de energia é grande), onde os investimentos em sistemas de distribuição de energia mostram-se mais rentáveis na medida em que, por exemplo, com um só quilômetro de rede construído é possível atender a centenas de consumidores no centro de uma grande cidade.

Já para a cooperativa, que atende apenas ao mercado rural e o mercado suburbano e interiorano, a realidade é bem mais sombria: a densidade, em média, gira no entorno de 3,5 cooperado/Km de rede. Para uma concessionária esse índice varia no Brasil de 15 a 30! 

Ainda, é de se considerar que o consumo médio do rurícola é bastante pequeno, relativamente ao consumo dos mercados urbanos e industriais.

Também é de se ter em conta que os custos de manutenção na área rural/interiorana são mais dispendiosos que na área urbana tendo em vista que as distâncias entre as propriedades usuárias dos serviços são muito distantes umas das outras, os acessos são difíceis, as estradas são de qualidade inferior etc.. tudo colaborando para que, do ponto de vista econômico, os custos dos serviços de distribuição sejam altíssimos, comparativamente aos custos da distribuição urbana.

É essa realidade econômica desfavorável que fez nascer em todo o mundo o cooperativismo de energia: as empresas concessionárias não investiam na eletrificação rural na velocidade que os agropecuaristas necessitavam, ou, em outros termos, investiam no mercado urbano industrial, onde o capital é melhor remunerado.

Isso forçou o homem do campo a buscar solução para seu problema de energia elétrica através do seu próprio esforço: criando cooperativas de eletrificação rural, tirando recurso financeiro do próprio bolso para construir suas redes de distribuição, bem como, como mostrado acima, responsabilizar-se por sua manutenção e operação. Evidencia-se, com isso, como parte do processo histórico de sua criação, que a cooperativa sempre desonerou o poder público desses recursos financeiros, já que o titular dos serviços de eletricidade no país, por determinação constitucional, como visto, é a União.

Sucessivos governos brasileiros vêm mantendo o entendimento segundo o qual do consumidor rural não se deve cobrar a tarifa de energia que reflita os custos reais dos serviços.

Isso porque essa tarifa, se assim fosse dimensionada, teria valor muito alto, incompatível, em muitas zonas rurais, com a capacidade de pagamento do agropecuarista. É que, como se viu, os custos dos serviços na área rural são bastante altos, e, desse modo, sempre se criou para o agricultor um subsídio tarifário, chamado no jargão do setor elétrico de “subsídio cruzado”, isto é, cobra-se uma tarifa do agricultor que não cobre os custos operacionais e remuneração do ativo postos nesses serviços, mas para isso outras classes de consumidores (residencial, comercial e industrial, etc) têm suas tarifas majoradas para além dos seus custos específicos. Mais recentemente, a partir de 2013, criou-se a CDE, encargo setorial cobrado de todos os consumidores de energia do país de onde advém recursos financeiros para custearem todos os subsídios do setor elétrico, entre os quais os dados ao consumidor rural.

Dentro desse cenário é possível imaginar o quanto injusto seria se da cooperativa já fosse cobrada uma tarifa igual àquela que seria fixada para ser cobrada do agricultor consumidor da concessionária local.

Por exemplo, se do agricultor atendido pela concessionária fosse cobrada uma tarifa de 100 reais por MWh de consumo, e se essa mesma tarifa fosse cobrada da cooperativa, o sócio desta seria penalizado sobremodo, eis que além dessa tarifa teria ainda, no rateio de custo, de arcar também com o pagamento da manutenção das suas redes.

Nesse exemplo, supondo que os demais custos operacionais representassem 60 reais por MWh, o associado da cooperativa teria que pagar 160 reais, ao passo que o não associado pagaria apenas aqueles 100 reais.

Esse sempre foi o grande problema do cooperativismo de energia do Brasil em geral: penalizar o associado que foi, enquanto cidadão, um exemplo, na medida em que não poupou esforços para resolver, por si só, um problema cuja solução competia ao Estado.

Não se desconhece que o estabelecimento de vantagens tarifárias para esta ou aquela classe de consumidor de energia é matéria jurídica o mais das vezes levada ao âmbito da discricionariedade da Administração Pública Federal que, querendo, ora concede benefícios aos irrigantes, ora ao dono de panificadoras, ou aos consumidores residenciais de baixa renda, em outras ocasiões para indústrias eletro intensivas (vg, alumínio), etc.

No caso específico das cooperativas de energia, no entanto, é de se entender que essa matéria, de há muito tempo, não mais loca-se nesse âmbito, senão que trata-se de matéria jurídica de natureza vinculada, como se mostrará mais à frente.

Nesse contexto, por primeiro, deve-se atentar para as normas constitucionais. Confira-se o artigo 174 da CF/88:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

[.]

§ 2º. A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

A Constituição Federal contemplou, através do seu Art. 174, o quadro de redefinição das funções do Estado Brasileiro no domínio econômico.

O Estado passou a exercer precipuamente a função de Estado Regulador, regulando e fiscalizando as atividades da iniciativa privada, ao invés de exercer o papel de Estado prestador.

Nessa esfera, o constituinte entendeu que o cooperativismo deveria ser apoiado e estimulado, elegendo-o como instituição apta a receber apoio do estado, motivo pelo qual foi editado o § 2º do art. 174 como diretriz geral ao legislador ordinário.

Ainda, no mesmo título da Ordem Econômica da Constituição, o Art. 187 remete à legislação ordinária o estabelecimento da POLÍTICA AGRÍCOLA NACIONAL, que deveria dar tratamento adequado ao “VI – cooperativismo e VII – à eletrificação rural.”

Pois bem, pode-se alegar que as normas encerradas nesses dois artigos seriam normas principiológicas, de eficácia diferida no tempo.

Ainda que fossem, a doutrina é unânime em assegurar que os princípios constitucionais constituem-se no alicerce de todo o ordenamento jurídico, estabelecendo os rumos sociais e econômicos que se quer perseguir.

Os princípios impõem condutas ao legislador, que deles não podem se apartar sob pena de estarem atentando contra a vontade da Nação.

Os princípios (aqui estabelecidos fundamentalmente através dos vocábulos “apoio” e “incentivo”), repita-se, ainda que se possa dizer que não tem eficácia imediata, mostram o norte; mostram, no mínimo, o que a sociedade quer e como quer sejam elaboradas as demais normas infra constitucionais.

Para sintetizar é de se ver que:

O sistema jurídico, ao contrário de ser caótico e desordenado, tem profunda harmonia interna. Esta se estabelece mediante uma hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as quais, por sua vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os princípios menores. Estes subordinam certas regras que, à sua vez, submetem outras (…) (ATALIBA, 1985, p 5-6).

Essa lição está posta aqui no sentido de se afirmar que as normas principiológicas informam tudo o mais no sistema jurídico, elas são a sua moldura, sem o que as demais outras não encontrariam base para a composição de um todo uniforme, lógico; e, sobretudo, legítimo.

No entanto, a doutrina mais abalizada não desconhece que a aplicação dos princípios constitucionais encontram, quanto a sua aplicação, limites na possibilidade, isto é, todos estão acordes em asseverar que a lei não pode exigir seja feito algo que esteja além da possibilidade física de cumpri-la.

Ensina, nessa senda, o consagrado civilista português (CANOTILHO, 1984, p. 545) que:

Princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de “tudo ou nada”; impõem a otimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a reserva do possível, fática ou jurídica.

Assim, cabe ao legislador, bem como à Administração, analisar o caso concreto para verificar a possibilidade ou não de regrar determinada matéria de moldes a atender seus princípios norteadores, mesmo que seja para lhe dar apenas parcial atendimento.

No contexto em que se está tratando a questão, o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado no sentido de entender que não se atenderá um princípio constitucional apenas na hipótese de manifesta impossibilidade.

Em suma, a Constituição da República estabeleceu que o cooperativismo deve merecer apoio e incentivo do Estado, e que a lei, ao estabelecer a Política Agrícola Nacional, necessariamente, abordaria os temas cooperativismo e eletrificação rural.

Sem grande esforço exegético é de se concluir que dita Política não poderia ser estabelecida com o fito de criar normas para impedir, ou impossibilitar, ou desmerecer, ou prejudicar o cooperativismo; mas, ao contrário, o comando constitucional é cogente, imperativo e mais que claro: i) o cooperativismo de serviços de eletricidade é parte integrante da Política Agrícola Nacional, ii) as normas infraconstitucionais ao criar essa Política deveriam também criar apoio ao cooperativismo.

A partir disso, após a Constituição Federal de 1988, o que foi feito?

Posteriormente, obedecendo aos mandamentos constitucionais, foi editada a Lei nº 8171/91, a lei que estabelece a Política Agrícola Brasileira.

Na parte que interessa, mencione-se apenas o tratamento dispensado ao cooperativismo no seu Cap. XXI, que cuida “Da Eletrificação Rural”. Veja-se:

Art. 93. Compete ao Poder Público implementar a política de eletrificação rural, com a participação dos produtores rurais, cooperativas e outras entidades associativas.

(…)

Art. 94. O Poder Público incentivará prioritariamente:

I – atividades de eletrificação rural e cooperativas rurais, através de financiamentos das instituições de crédito oficiais, assistência técnica na implantação de projetos e tarifas de compra e venda de energia elétrica, compatíveis com os custos de prestação de serviços; (acrescentadas ênfases)

Dessas normas vê-se que o legislador buscou atender os princípios constitucionais antes mencionados: quando estabeleceu a política nacional relativa à eletrificação rural fê-lo i) elegendo o cooperativismo como instituição a participar da eletrificação dos campos nacionais, e ii) também determinou ao Poder Público vários incentivos a serem concedidos ao cooperativismo, dentre os quais o tarifário.

Com “prioridade”, diz o texto da lei, o Poder Público deve incentivar” o cooperativismo com tarifas de compra e venda de energia.

O texto da lei ordena que isso seja feito tendo-se em conta os custos operacionais da cooperativa, ou seja, deve-se, antes de qualquer coisa conhecê-los.

É que, como se pode estabelecer uma política de incentivo tarifário para o cooperativismo, sem que se conheçam, a priori, seus custos e suas demais realidades?

Conhecido esses custos seria possível imaginar que o preço (rateio de custos) final dos serviços de energia elétrica prestados pela cooperativa aos cooperados seja maior que a tarifa que o mesmo Poder Público fixa para os agricultores não cooperados atendidos pela concessionária local?

Nessa hipótese (preços maiores para os cooperados) teria algum sentido em se falar que a política tarifária estaria incentivando o cooperativismo? Que incentivo seria esse?

Ora, por mais que se queira distorcer a vontade da lei, preços maiores para os associados só tem um significado: o associado, à toda vista, está, claramente, sendo penalizado.

Mas não é só isso. Lei de caráter específico (Lei Federal nº 9.427/2006, que cria a ANEEL, estabelecendo-lhe as funções e obrigações), traz em seu Artigo 3º, XI, como sendo obrigação da ANEEL:

estabelecer tarifas para o suprimento de energia elétrica realizado às concessionárias e permissionárias de distribuição, inclusive às Cooperativas de Eletrificação Rural enquadradas como permissionárias, cujos mercados próprios sejam inferiores a 500 (quinhentos) GWh/ano, e tarifas de fornecimento às Cooperativas autorizadas, considerando parâmetros técnicos, econômicos, operacionais e a estrutura dos mercados atendidos. (sublinhou-se).

Não há margem para interpretações capciosas: a lei determina que a ANEEL calcule tarifas de aquisição para as cooperativas autorizadas e permissionárias de acordo com seus custos operacionais e a estrutura de seus mercados.

Isto é, a lei está mandando que a ANEEL conheça ditos custos, que verificasse quantos quilômetros de redes de distribuição opera a cooperativa; quantos associados atende; quanta energia adquire para repassar-lhes; enfim, que conhecesse a cooperativa, suas características, e seus custos. Só após isso é que deveria estabelecer as tarifas de aquisição.

Ainda, é de se ressaltar que existe no sistema jurídico nacional uma norma geral que estabelece que as grandes distribuidoras de energia devem adquirir a energia que distribuirão através de leilões. Essa é a regra geral.

No entanto, norma específica trazida pela Lei 9648/98 excepciona o caso das cooperativas, vide:

O disposto no caput não se aplica ao suprimento de energia elétrica à concessionária e permissionária de serviço público com mercado próprio inferior a 500 (quinhentos) GWh/ano, cujas condições, prazos e tarifas continuarão a ser regulamentados pela ANEEL.(Art. 10, § 5o da lei 9648/1998)

Neste ponto é de se perquirir: por qual a razão (interpretação teleológica) o legislador criou norma geral determinando que as grandes distribuidoras comprassem energia no mercado através de leilões e que o poder público fixasse essas tarifas para o caso das cooperativas, ou seja, não determinasse, a priori, que elas também deveriam dirigir-se ao mercado para essa compra?

Evidencia-se que o conjunto normativo supra apontado está posto exatamente no sentido de criar proteção às cooperativas.

Não fosse esse o entendimento as normas nada diriam sobre apoio, incentivo, ou não obrigatoriedade de competir no mercado por tarifas de aquisição: elas, se não quisessem proteger as cooperativas, simplesmente se calariam.

Á guiza de conclusão, contata-se que, desde a Constituição, passando pelas leis ordinárias e regulamento, é por demais facilitada a tarefa do intérprete: não só as tarifas de aquisição deveriam ser dimensionadas a partir de cálculos específicos para cada cooperativa, como forçosa é a conclusão que essas tarifas devem incentivar o cooperativismo.

Por tudo que se apontou acima é que se deve entender que o fato do cooperado ser forçado pela Aneel a pagar mais que um outro agropecuarista, ou outro consumidor da concessionária em idênticas condições, atendido diretamente pela própria concessionária, é algo que não encontra justificativa de ordem alguma.

A política tarifária que resultar nessa situação, como se disse acima, a par de injusta, mostra-se ilegal.

Mais uma vez: desde os princípios constitucionais, passando pelas leis citadas, não se encontra em um só lugar qualquer norma que possibilite entender que o associado deva ser penalizado, mas, ao contrário, todas as normas estabelecem a obrigação legal de criar incentivo ao cooperativismo.

Se, disso tudo, ainda resultar interpretação de que o cooperativismo estaria sendo incentivado com o seu associado nessa condição, então é forçoso reconhecer que dita interpretação estaria a serviço de interesses oblíquos, à margem do ordenamento jurídico, que não cabe aqui comentar.

E, dado o fato dessa regulamentação econômico-financeira ter efetivamente resultado, em muitos casos, em dimensionamento de tarifas maiores para os associados a conclusão é a de que dita regulamentação conflita com as normas de proteção ao cooperativismo.  

A solução para o caso seria a de se adotar a tarifa da concessionária local supridora como limite para o estabelecimento das tarifas para os associados.

XIV – CONCLUSÕES

O estudioso do cooperativismo brasileiro se deparou sempre com a escassa produção literária sobre sua doutrina. Esse fato vem sofrendo paulatinas e recentes mudanças com produções de sucessivas publicações que, felizmente, elevam o debate técnico sobre as sociedades cooperativas a níveis mais condizentes com a importância que o cooperativismo já ostenta na sociedade brasileira contemporânea.

Trata-se de constatação auspiciosa: jovens doutrinadores estão se debruçando sobre temas técnicos relevantes e, até então, sujeitos a pouco ou nenhum exame mais acurado. Se isso se dá em relação ao cooperativismo em geral, é fácil deduzir que, em relação ao cooperativismo de energia, as análises técnicas são praticamente inexistentes.

Nesse contexto, este artigo levanta questões que devem ser estudadas com mais rigor e pretende servir como desafio àqueles que enfrentam as agruras da falta de literatura a não esperar por elas, mas sim a produzi-las. Não basta que a comunidade jurídica se lamente da falta de conhecimento e reconhecimento de temas caros ao cooperativismo, eis que recai sobre ela exatamente a responsabilidade de não permitir tamanho esquecimento. Neste caso específico do cooperativismo de energia, tal responsabilidade repousa também sobre a autoridade reguladora, posto que a lei a incumbiu da edição de regulamento acorde com o que seja a sociedade cooperativa.

A síntese final, sobretudo por se tratar de tema novo no direito brasileiro, que é permita estabelecer é que a regulamentação das sociedades cooperativas no Brasil para a prestação de serviço público deve ser repensada, deve ser estudada e amadurecida, sob pena de desconstrução do cooperativismo.

XV- REFERÊNCIAS

ANDRIGUI, Fátima Nancy. Autonomia do Direito Cooperativo. In Krueger, Guilherme. Cooperativismo e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Melhoramentos, 2003.

ATALIBA, Geraldo, REPÚBLICA E CONSTITUIÇÃO, SP: RT, 1985.

BLANCHET, Luis Alberto. Concessão e Permissão de Serviços Públicos. Juruá. Curitiba. 1995.

CANOTILHO, j. Gomes, DIREITO CONSTITUCIONAL, Ed. Coimbra, 1984

FRANCO, Carlos Joaquim de Oliveira. A Figura do Sócio, Associado ou Cooperado in GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Sociedades Cooperativas (Coord.), São Paulo: Lex Editora, 2018

OLIVEIRA, Ruth Helena Pimentel de. Entidades Prestadoras de Serviços Públicos e Responsabilidade Extracontratual. São Paulo: Atlas, 2003.


[1] Engenheiro Eletricista; Engenheiro de Telecomunicações; Advogado com atuação em Curitiba e região.